EU NÃO GOSTO DE ENCRENCAS, MAS ELAS GOSTAM DE MIM.

terça-feira, março 25, 2008

CABEÇA NA PRIVADA

Davi começou a semana fazendo o de sempre: foi curar a ressaca do porre de domingo à noite com o porre matinal de segunda. Fazia isso a três quadras de seu apartamento - no Sem Dente, um boteco sujo batizado com o apelido de seu dono.
Entretido na função curativa, Davi sentiu uma pontada na barriga que denunciava a necessidade de aliviar seus intestinos. No entanto havia ali um entrave: o banheiro do Sem Dente era famoso por sua insalubridade. Havia a lenda de um bêbado de rua que tinha um cachorrinho: onde quer que o homem fosse, seu amiguinho o acompanhava. Um dia, quando o mendigo entrou no banheiro, o cão parou, cheirou atentamente o ar e saiu ganindo. O dono do bar confirmava a história, mas dizia que era frescura do cachorro.
Pois era um banheiro em tais condições que Davi se recusava a usar. Por isso, jogou no balcão o dinheiro das duas pingas que tomara e se pôs a correr para casa. Davi tinha calafrios, e sentia uma cólica infernal. Era eminente de que ia se borrar no meio da rua, até que se deu conta de que a casa de seu amigo Rique era mais perto que a sua, bastava dobrar a primeira esquina à esquerda. Apesar de burro e traficante, Rique tinha bom coração.
Quando Davi chegou em frente ao portão da casa, Rique estava na janela fumando. Abriu o portão e foi entrando dizendo “Cara, me ajude!” Rique mal abriu a porta e Davi, corpulento que era, empurrou o rapaz e correu pro banheiro anunciando “Sai da frente que eu preciso do teu banheiro!” Rique, aturdido, tentou parar Davi, mas não foi possível. Sem fechar a porta direito, Davi ergueu a tampa da privada, e quando foi baixar as calças viu o que Rique queria esconder: havia uma cabeça na privada. Uma cabeça de mulher, de cabelos curtos e aloirados, dentes grandes, pele morena, com grandes brincos de argola nas orelhas. Davi, paralisado e surpreendentemente constipado, perguntou “O que que é isso?” “Uma cabeça”, disse Rique. “Isso eu sei, mas o que ela tá fazendo aí?” “É uma história meio longa... é que ela disse que ia fazer uma macumba pra mim, e tudo ia ficar ruim pra mim e pro meu pai. E eu não achei lugar melhor pra guardar. E ali dentro ela não ia fazer sujeira, né?” “E por isso você cortou a cabeça dela?” “É... não... mais ou menos.” “Acho que é melhor eu não saber muito sobre isso, né?” “É.” “Rique... você tira ela daí pra eu cagar?” “Não vai dar... mas você pode ir lá no quintal. Só te peço pra daí enterrar.” “A cabeça?” “Não, a tua bosta.” “Ah, claro, claro. Tem pá, lá atrás?” “Tem. Tá do lado da porta.” “Certo. Posso perguntar uma coisa?” “Pode.” “Foi você que cortou a cabeça dela?” “Mais ou menos.” “Como assim? Cortou ou não cortou?” “Quem cortou foi o meu pai, eu só segurei.” “Mas ela tava viva?” “Antes de meu pai matar ela, tava.” “Tá, vou perguntar de novo: quando vocês cortaram a cabeça dela, ela tava viva?” “Ah, não. Meu pai deu um tiro nela, e sumiu com o corpo. Mas antes eu pedi pra ele cortar a cabeça. É que eu sempre quis ter uma caveira no meu quarto.” “Por que não compra uma de gesso?” “Ah, não é a mesma coisa.” “É, é verdade... bem, vou lá atrás e depois a gente conversa, tá?” “Beleza. Mas enterra bem, que se meu pai sabe que você teve aqui, vai me encher o saco e é capaz de querer te matar também.” “Pode deixar.”
Davi foi para os fundos se aliviar, enterrou o que devia ser enterrado e, quando ia chamar o dono da casa para dizer que terminara e ia embora, percebeu as figuras de dois policiais militares prendendo Rique. Achou melhor não aparecer, pulou o muro dos fundos, saiu em outra casa, onde um cachorro lhe abanou o rabo, pulou outro muro e estava na rua. Sentindo-se livre, voltou ao Sem Dente, pois o que vira fora muito pra sua cabeça, e uma cervejinha sempre relaxa.

segunda-feira, março 17, 2008

ESTEVÃO E PRINCESO

Nem eu nem ninguém acreditou quando Estevão saiu andando por Curitiba sobre Princeso, seu elefante. Ele dizia que ia ganhar dinheiro vendendo o estrume do animal como adubo para os jardins das casas.
“Ô, madame! A senhora não sabe a força que a bosta desse bicho tem. Vai fazer essas rosinha miudinha da senhora ficar campeã! A senhora vai ver só!”
A madame então ria e dava ao homem uns trocados, um sanduíche, mas dispensava a mercadoria; às vezes Estevão ganhava uma sacola de mimosas, cujas cascas e sementes ele jogava e cuspia nas crianças que o seguiam, pulando e gritando. Ele então fazia sinal de positivo ou de paz e amor à maneira do Didi dos Trapalhões, sorrindo com seus pobres dentes e agitando sua barba e cabelos longos, sujos e emaranhados.


Eu conhecia Estevão do circo que se instalara perto da minha casa. Era um circo pobre, de leões magros e palhaços bêbados. Ele cuidava dos bichos, principalmente do elefante que fazia uma meia dúzia de truques, devorava uma quantidade assustadora de comida e defecava montes impressionantes. E Estevão também era figura que chamava a atenção: baixo, atarracado, pele queimada de sol e os seus cabelos e barbas longos; desses últimos, ele dizia:
“Meu sonho é ver meu cabelo arrastando no chão, mas acho que vai cair tudo antes”, e apontava o cocuruto de cabelos rareando, enquanto ria mostrando os polegares de positivo.
Nessa época, a mulher do dono do circo fugiu com um dos palhaços levando o melhor trailer – que estava em seu nome – e todo o dinheiro do circo. Falido, e principalmente, desiludido do amor, o dono do circo disse a cada um dos integrantes para pegar o que quisesse, pois ele não tinha mais com o que pagá-los, nem queria mais saber do circo. Estevão ficou com Princeso – O Maravilhoso Elefante Adestrado.
Na segunda semana de Estevão com o elefante andando pelas ruas, depois de aparecer na TV em entrada ao vivo e em rede estadual ao meio-dia, e à noite em cadeia nacional, o Ibama recolheu o elefante e a polícia prendeu Estevão por posse de animal selvagem sem licença. O delegado, penalizado com a miséria do homem e seu desespero com a situação, manteve-o na delegacia sem colocá-lo em cela nem algemá-lo por um par de horas, para então liberá-lo.


Princeso acabou indo para o zoológico do Rio de Janeiro, para tornar-se o orgulhoso pai de um par de elefantinhos. Por conta disso, Estevão apareceu novamente na TV, sendo preso tentando entrar no lugar onde o amigo estava. Dormiu dois dias numa cela, foi liberado e desapareceu por muito tempo. Há alguns meses, um vizinho meu disse que o viu num circo no interior, sorrindo e fazendo sinal de positivo para um grupo de crianças que o cercavam, enquanto enchia um carrinho de mão com excrementos de elefante.

(para o meu sobrinho Marcello)