EU NÃO GOSTO DE ENCRENCAS, MAS ELAS GOSTAM DE MIM.

quarta-feira, outubro 22, 2008

O AUTO DO "AO DISTINTO CAVALHEIRO" (Peça em um ato com colarinho)

(Narrador em off, com a cortina fechada):
“Dentre os lugares profanos, a mesa e o balcão de boteco estão entre os mais sagrados. O insólito, o trágico e o divertido ali se encontram e tomam umas e outras juntos, sem incomodar a ninguém.”

(Abre-se a cortina. O cenário é o bar Ao Distinto Cavalheiro. No centro do bar há uma mesa com quatro cavalheiros distintos: Marcello, o mais velho, tem quase 30 anos. Murilo é sobrinho de Marcello e tem 20 anos; Gustavo e Rodrigo são irmãos gêmeos e têm a mesma idade que Murilo. Os quatro conversam e bebem animadamente, um tentando falar mais alto que o outro)
Rodrigo: O bom de quem bebe é que sempre tem histórias boas. O nosso vô bebia, e...
Marcello (cortando): Ele bebia?
Rodrigo: E um monte. Não bebe mais, por causa da saúde.
Marcello (fazendo cara de assombro): Puxa...
Rodrigo: Teve uma vez, quando a gente era pequeno, ele chegou do boteco cozido e fedendo a cigarro. Lembra dessa, Guga?
Gustavo: Da história do banho? Claro! A gente tinha uns seis ou sete, né?
Rodrigo: Sete, eu acho. Então: ele chegou naquele estado, e a vó falou assim pra gente: “Digo, Guga, falem pro vô pra ele ir tomar banho, porque senão vocês não vão beijar ele...”
Gustavo: É que a gente sempre foi muito ligado no vô. Ele ajudava a mãe a cuidar da gente desde pequenininho, então pra ele, a gente não querer beijá-lo era uma ofensa.
Murilo: E aí, o que aconteceu?
Rodrigo: Aí que o vô falou assim: “Podem vir beijar o vô, sim, porque o vô é auto-limpante!”
(Todos riem)
Rodrigo: O pior é que o Guga perguntou: “Que que é isso vô?” E o vô falou: “É um tipo de super-herói!”
Gustavo: E aí eu falei: “Então se transforma aí, vô!”
(Todos riem novamente)
Rodrigo: O mais engraçado foi a minha vó gritando lá do quarto: “auto-limpante é porco que não toma banho!”
(mais risadas)
Murilo (para Marcello): Teve uma vez, tio, que eu saí com esses dois e a gente tava na frente do barzinho, e tinha uma mulher, dessas que moram na rua, toda suja, fedendo, pedindo dinheiro. E aí o Gustavo começou a conversar com ela, e ela com aquela conversa que não dava pra entender nada. Aí ela falou bem baixinho pra gente: “Eu brilho no escuro.”
Rodrigo: Me deu uma vontade de rir, mas Gustavo me fez sinal pra ficar quieto...
Marcello: E o que aconteceu?
Murilo: Eu perguntei porque ela não tava brilhando. Aí ela disse que era porque ali tava muito iluminado. Mas se a gente olhasse pra dentro da blusa dela, pela gola, ela ia estar brilhando.
Marcello: E vocês olharam?
Murilo: Eu e o Rodrigo olhamos, né?
Rodrigo: Ã-hã.
Marcello: E o que vocês viram?
Murilo: Que ela tinha um peito maior que o outro!
(Risadas)
Rodrigo: O maior era o que tinha a verruga! Hahaha!
Marcello: Você não olhou, Gustavo? Por quê?
Gustavo: Ela era muito fedida.
Rodrigo: Mas é um fresco mesmo... (os dois fazem gestos brincando que vão brigar)
Marcello: Uma vez eu tava com um amigo meu, voltando de uma festa, andando na rua de madrugada. A gente tava ali perto da catedral. A gente passou na frente de uma marquise e ali estava cheio de mendigo, tudo cozido. O meu amigo tava meio torrado, não se ligou nos caras ali, e inventou de tirar a carteira de cigarro bem na frente deles. No que ele puxou o cigarro, um deles pediu um. O meu amigo deu, e os outros também pediram. Aí ele teve de dar cigarro pros outros também. Na hora de acender, ninguém ali tinha fogo. Era de madrugada, não tinha ninguém passando na rua. Aí um deles, barbudão, saiu lá do fundo da caixa de papelão dele e disse alto, apontando pro céu: “O senhor é meu pastor e nada me faltará!” Aí uma luz surgiu em cima dele. Ele olhou bem nos olhos do meu amigo e mostrou a mão fechada pra baixo (Marcello faz o gesto da mão fechada com a palma para baixo). Aí ele virou a palma pra cima (Marcello continua mostrando o gesto que descreve) e no que ele abriu a mão, a gente viu: do nada apareceu na mão do cara uma caixa de fósforos.
Gustavo: Ah, sai dessa!
Marcello: Espera, eu não terminei. Ele abriu a mão, e aí os caras começaram a falar baixinho “milagre... milagre...” Todos se olhando. Todo mundo então fez o sinal-da-cruz, e com o maior respeito do mundo acenderam os cigarros. A gente ficou ali, todo mundo sentindo que alguma coisa especial tinha acontecido... aí eu e meu amigo nos olhamos e decidimos ir embora. Os mendigos todos disseram: “vão com Deus, irmãos” e a gente falou “Amém, vocês também.”
Rodrigo: E foi milagre mesmo?
Marcello: Não sei se foi um milagre, mas que eu vi acontecer, vi.
(Todos se olham, emudecidos. Murilo então levanta e ergue o copo)
Murilo: Um brinde aos bebuns do mundo!
Todos: Um brinde aos bebuns do mundo!

(Fecha-se a cortina)