EU NÃO GOSTO DE ENCRENCAS, MAS ELAS GOSTAM DE MIM.

segunda-feira, agosto 17, 2009

SUICIDADOR

“Curitiba, 05 de dezembro de 1988.

Filha querida,

Antes de mais nada, saiba que tenho por você todo o amor do mundo que um pai pode ter por sua filha. Apesar de não viver mais com sua mãe, esforço-me para lhes dar o máximo de conforto e não permitir que nada lhes falte, e eu tenho certeza de que você sabe disso. Como amanhã é o seu décimo-quinto aniversário, e eu terei de viajar a trabalho, o que infelizmente significa sair bem antes de você acordar e se preparar para a sua festa – que eu tenho certeza de que vai ser linda, pois eu fiz questão de que fosse preparada como você queria – decidi contar-lhe o que realmente faço para ganhar a vida. Você já está se tornando uma mulher, assim é muito importante que essa seja a nossa primeira conversa como adultos, ainda que seja por carta.

Você poderá estranhar, mas eu entenderei: minha profissão não é legalizada, e muitos nem sequer sabem que ela existe; se o soubessem, certamente prefeririam que não houvesse. Porém, é necessário admitir, é um trabalho como qualquer outro: tenho meus procedimentos, minhas rotinas e minha ética. Filha, eu diria que o meu trabalho é eliminar dilemas.

Sou um suicidador, e meu trabalho funciona basicamente da seguinte maneira: quando uma pessoa deseja morrer, ela vem até a mim, escolhe como deseja que isso aconteça, e eu a suicido. Não, não sou um assassino, pois não mato terceiros por encomenda. Apenas mato quem me paga para ser morto. E cobro um bom preço, afinal é uma tarefa de grande responsabilidade e importância. Isso me permite levar uma vida bastante confortável, e consequentemente cara – você deve imaginar, afinal você vive em um apartamento grande e elegante com sua mãe, estuda num dos melhores colégios de Curitiba, tem regalias de menina de boa família; dessa maneira, não posso parar assim, sem antes ter uma reserva considerável.

Vou lhe contar algumas das minhas missões. Entre as primeiras, uma das que mais me marcaram foi cortar os pulsos de uma jovem de 22 anos. Ela era bonita, inteligente e rica. Hoje, quando me lembro dela, percebo em seus olhos esse brilho juvenil, porém, ao contrário de você, minha filhinha, tão alegre, ela era extremamente depressiva. Havia descoberto que fora enganada por um namorado ao qual amava demais – como sempre digo, se Deus inventou algo pior do que o homem, guardou para ele. O procedimento dela ocorreu numa cabana que ela mesma alugou, no interior do Paraná. Era um lugar ermo no meio do mato. Fui ao local com ela em sua luxuosa pick-up, mas escondido para não haver testemunhas. Levamos uma banheira, pois era assim que desejava ser vista quando fosse encontrada: nua, com as veias esvaziando dentro da banheira cheia de pétalas de rosa de cor branca. Ao lado da banheira, o livro de que ela mais gostava – não me pergunte qual era, sou péssimo pra lembrar nomes dessas coisas – um CD de ópera e a sua carta suicida.

Entramos, levei a banheira ao banheiro, enchemos de água quente, ela temperou a água até achá-la agradável, despiu-se – tinha um corpo lindo, mas não se preocupe, seu pai não é nenhum pervertido – arrumou os objetos como queria, entrou na banheira e eu fiz as incisões. Três em cada pulso, e a deixei ali. Com o celular dela mesma mandei uma mensagem para a família, para que fosse ao lugar buscar o corpo. Esse é um dos serviços incluídos no pacote: avisar a família dos suicidados, ou quem quer que seja, se assim me for encomendado.

Semana retrasada suicidei um senhor que estava em estado terminal de uma doença rara. Ele tinha muitas dores, tomava remédios que já não funcionavam mais, era sozinho, sentia-se um estorvo para sua família. Eu sempre primeiro pergunto de que maneira a pessoa quer morrer. Minha primeira oferta é o tiro na boca, em direção ao cérebro; esta é a opção menos dolorosa e mais rápida; como garantia, dou um segundo tiro, para evitar ao máximo a sobrevida – aliás, o segundo tiro nunca ocorrerá caso o cliente deseje que realmente pareça de um suicídio – e foi essa a opção que esse pobre homem escolheu prontamente. Não é lá muito limpo, mas eu uso luvas, máscara, óculos e avental para não tocar em nada que possa ser muito desagradável. Sempre acabo tendo de limpar a arma, mas é o de menos.

Pelas minhas contas, já suicidei entre 90 e 100 pessoas. Parei de contar para evitar que achasse a conta grande demais. Porém, sempre aparecem novos clientes. Tenho boas credenciais, sou acima de qualquer suspeita, e a minha taxa total de sucesso me faz conhecido entre as pessoas da alta sociedade. Já prestei serviços a famílias ricas de quase todos os estados do país. Mas também faço caridade: já suicidei gente em favela, mas evito isso por uma questão de segurança. Há sempre alguém que faça escândalo, além de a polícia frequentemente rondar esses lugares.

O que eu acho mais curioso é que também há pessoas que querem morrer de maneiras dolorosas, o que consome mais tempo, mais força e às vezes corre-se o risco de o suicídio fracassar. Por outro lado, por trata-se de um suicídio trabalhoso, pode-se cobrar mais pelo trabalho; apesar de eu não fazer questão de derramar muito sangue, ele não me repele, e não poucas vezes esse adicional no preço pagou luxos a você e sua mãe, como a última viagem ao exterior que vocês fizeram. Houve uma vez em que um homem, que queria morrer a facadas, permaneceu vivo mesmo depois de praticamente estripado. Eu lhe disse que seria algo sofrido, mas não adiantou: era isso mesmo o que ele desejava – e pagou por isso, sem hesitar. Disse-me que merecia morrer como um porco, e por isso eu deveria primeiro pendurá-lo em um gancho, sangrá-lo no pescoço, abrir seu abdômen e deixá-lo ali, naquela condição. Ele era um ex-militar, homem bruto e que se dizia um grande pecador: adúltero contumaz, sem compaixão pelo próximo, gostava de ver os outros sofrerem. Num surto de culpa definiu que era assim que morreria, e assim o fiz, para sua satisfação. Levou longas cinco horas para definitivamente morrer, e eu o acompanhei até o fim de sua agonia.

Amanhã à noite, no dia do teu aniversário, minha filha, vou suicidar um empresário cujo sócio limpou a sua conta na Suíça, roubou sua mulher e ameaça entregar as falcatruas do meu cliente à polícia caso ele tente fazer alguma coisa. Ele me pediu para eliminar o outro, mas, como já disse antes, não faço isso. Lido apenas com suicídios, então serei o seu último investimento: serviço de primeira, com retorno certo, e sem o dinheiro de volta.

Minha filha, eu poderia poupá-la destas histórias macabras, e se você não quiser nunca mais me ver, eu entenderei, e nunca deixarei de apoiá-la. Por outro lado, para mim tornou-se fundamental que você soubesse bem do que estou falando, pois se você, querida, desejar aprender a profissão, eu terei muito prazer em ensiná-la a você. Profissionais como eu são raros e por isso mesmo, bem pagos. E tenho toda a certeza, por conhecê-la como conheço, de que você será uma excelente suicidadora.

Feliz aniversário,

Papai”

sexta-feira, agosto 07, 2009

A HORA DO CRUZ

1


“Mãe! Olha o Cruz na TV!”
“Nossa! É mesmo?!
“É, mãe!”
“E o que ele tá fazendo em cima do prédio com um revólver apontado pra cabeça daquele homem?”
“Sei lá!?”

* * *


As câmeras de tevê estão voltadas para Cruz. Ele está no alto do prédio, apontando um revólver para a cabeça de um homem engravatado. Este, por sua vez, tem presa ao seu corpo uma mala contendo muito dinheiro e bananas de dinamite. Ninguém sabe ainda quem é esse outro homem. Só o Cruz.


2


Cruz é mal-humorado e engraçado. Fala palavrões o tempo todo, em qualquer situação, e sempre em bom volume. É capaz de dizer frases como “um amigo é um filho-da-puta que eu agüento sem querer dar porrada nele” com naturalidade. Ele é grande, e seu tamanho impõe respeito. Não costuma ser exatamente violento, mas se isso for necessário ele será; Cruz odeia injustiças. Bebe pouco e nunca tocou em drogas. Seu irmão, por outro lado, é viciado em qualquer coisa que cause algum efeito em seu cérebro. Ele tem medo de Cruz, pois na primeira e única que vez em que roubou um radinho de pilha de sua pobre mãe para trocar por maconha, Cruz lhe deu uma surra corretiva que até hoje o faz tremer só de pensar em pegar qualquer objeto dentro de casa. Cruz adora sua mãe, que se sente em eterna dívida com ele.

3


Cruz tem uma forte propensão a ser vítima das circunstâncias. Na maioria das vezes, quando há algo para dar errado, isso acontecerá com Cruz. Cruz não aguenta mais, e isso faz com que fique cada vez mais mal-humorado.

Ele trabalha numa loja de ferragens. O dono dela é Luis Augusto, mas todos o chamam de Zinho. Zinho é o pior filho-da-puta que Cruz já conheceu. Mas Cruz trabalha lá não só porque Zinho gosta da maneira como ele trabalha, mas também por questões morais e de honra.

Pouco tempo depois que Cruz começou a trabalhar ali, Zinho ofereceu ao novato um trabalho extra: cortar a grama de sua casa. A mulher de Zinho estava viajando, e ele queria fazer a ela uma surpresa, já que era cobrado por ela para que cortasse a grama há alguns meses. Como a loja estava numa hora de pouco movimento, um balconista a menos não seria nada demais. Zinho fez uma proposta e Cruz aceitou.

Zinho levou Cruz para sua casa às 10 da manhã. O sol ardia, e não só o terreno era grande, como o gramado estava escondido por uma densa floresta. Cruz não gostou do que viu, e disse: “a situação tá feia. Pra eu cortar isso aí eu vou querer mais.”. Zinho disse então “Quanto?” “Mais 20.” Zinho pensou um pouco e, como o preço que fizera realmente era ridículo, meio a contragosto disse: “Tá bom, mais 20.”

Zinho mostrou a Cruz onde estava a máquina e deu algumas recomendações sobre as plantas de sua mulher. Disse que ia ao banco, depois traria uma marmita para Cruz almoçar; por volta de meio-dia estaria de volta, e saiu.

Cruz começou a trabalhar e a tarefa não era fácil. Além de a grama estar bastante alta, havia muito mato e obstáculos por todo o gramado: pedaços de tijolo, brinquedos dos filhos de Zinho, sacos de lixo esquecidos. À medida que se cansava e o sol lhe torrava a cabeça, Cruz ia se irritando. Sua fome aumentava, e nada de Zinho aparecer. Cruz achou que já devia ser meio-dia e pouco, quando foi até onde estava o seu relógio e viu no mostrador: 1:10. Soltou um palavrão e começou a preparar sua vingança.

Exatamente às duas horas e sete minutos, chegou um funcionário da loja com um sanduíche de presunto e queijo para o Cruz junto com um refrigerante. “Oi, Cruz! O Zinho pediu desculpas, mas se esqueceu de você... ele teve uma briga no banco, comeram um dinheiro lá dele, ele ficou puto, brigou e voltou pra loja. E aí, agora há pouco, lembrou de você e me mandou te trazer esse sanduíche, porque você deve estar com fome.” Cruz soltou uma avalanche de palavrões e disse que o Zinho ia se foder na mão dele. Mandou o funcionário esperar um pouco, porque ele já estava no fim do trabalho, e ele queria ir acertar as contas com o Zinho hoje mesmo. O funcionário protestou e Zinho arrancou a chave do carro da mão dele e disse “Vai ficar aí ou quer levar porrada junto com aquele filho-da-puta?” O funcionário, um homem franzino de mais de sessenta anos, ficou quieto. Esperou longos 40 minutos até que Cruz terminasse a empreitada e lhe dissesse “vamos lá?” e lhe entregasse as chaves.

O homem, quietamente abriu o carro; entraram e seguiram para a loja.

Ao chegar lá, Cruz viu Zinho, dirigiu-se a ele, agarrou-o pela gola da camisa e vociferou: “Como é isso de que você se esqueceu de mim, seu filho-da-puta? Você viu o mato que tava aquela porra? Você viu o calor que tava? Te passou pela cabeça que eu tava morrendo de fome?”

Zinho se soltou e disse “Tá despedido!” “Pois por mim, pode enfiar essa merda de emprego no rabo! Não quero nem saber se eu vou preso ou não, mas que você vai apanhar feito um cachorro, vai! Vamo lá pra fora.” Zinho era valente e falou: “Pois então vamos! E depois da coça que eu vou te dar você nunca mais aparece aqui!” “Ha ha ha! Então tá. Mas e se você apanhar?” “Daí nada.” “Como nada? Se você apanhar, eu continuo trabalhando aqui, você dobra o meu salário e não me enche o saco!” Zinho não pensava muito quando estava com raiva, por isso disse na hora: “Tá bom!” Cruz ainda falou: “Todo mundo aqui na loja é testemunha, certo?” Zinho olhou pra todos ali e confirmou: “Todo mundo!” E saíram. Deu pena do Zinho. Quando percebeu, depois de ter levado três tapas na cara, que a força que tinha era pouca para aquele brutamontes, disse, “Pára. Vamo lá pra dentro! Você ganhou, puta que os pariu.” Cruz queria ter batido muito mais, mas só de ver o chefe lhe pedindo para que parasse de bater lhe deu um raro orgulho.

Diferentemente do que se poderia esperar, Cruz tornou-se tanto o funcionário mais caro de Zinho, como o melhor deles; porém, o ódio e desprezo que Cruz sente por Zinho só faz aumentar. Tanto que um dia, conversando com um dos colegas, Cruz disse: “Se um dia eu tiver um filho, ele vai se chamar Luiz Augusto.” “Luiz Augusto? Mas esse não é o nome do cara que é o teu pior inimigo, Cruz? Como é que você vai chamar teu piá assim?” “Mas é por isso mesmo. Não quero nunca me esquecer do nome desse filho-da-puta.”


4


“O seqüestrador, aponta um revólver para a cabeça do refém que segura uma mala. Segundo informação ainda não confirmada pela polícia militar, essa mala contém dinheiro e explosivos.; a polícia ainda não conseguiu identificar quem é o agressor, mas a vítima é Valdomiro Renato Borges Júnior. Valdomiro é foragido da polícia, e conforme foi divulgado em nosso jornal há duas semanas atrás, ele é um estelionatário que aplicou o golpe da casa própria em mais de 800 pessoas, sendo a maior parte delas de origem humilde. O valor total de suas fraudes, de acordo com a polícia é de aproximadamente dois milhões de reais. A polícia trabalha com a hipótese de que ele esteja sendo ameaçado por uma das vítimas de seus golpes. A polícia foi chamada por uma moradora do prédio vizinho, que percebeu a presença de um homem armado ameaçando o outro. Mais informações ainda nessa edição.”

5


“Antes da gente começar a gravar, eu queria fazer umas perguntas, tudo bem?”
“Claro.”
“Desde quando o senhor é amigo do Cruz?”
“Desde pequeno. A gente estudou até a oitava juntos. Aí eu continuei e fiz o segundo grau, mas ele parou e foi trabalhar pra ajudar a mãe dele. Mas o Cruz não é bandido, não.”
“Certo. E o que o senhor acha que fez ele fazer isso?”
“Ah, ele sempre foi muito esquentado. Nunca teve paciência com quem fazia as coisas errado.”
“E o nome dele? É Cruz mesmo?”
“Todo mundo chama ele de Cruz porque ele odeia o nome dele.”
“E como ele se chama?”
“Ah, não posso falar não...”
“Ué? Por quê?”
“Ele vai me bater se souber que eu contei!”
“Mas ele não vai saber que foi o senhor.”
“Olha lá, hein?”
“Não vai saber mesmo.”
“Então, tá. É João Maria Cruz.”
“E ele não gosta do Maria, suponho eu.”
“Não gosta? Ele odeia. Tanto que a coitada da mãe dele até hoje se sente em dívida com o filho por causa disso.”
“Ah é?”
“É... Foi assim: no primeiro dia de aula da vida do Cruz, um piá maior do que ele soube que ele tinha esse nome, e começou a chamar ele de Mariazinha. Foi a manhã inteira de aula com o moleque grandão, prevalecido fazendo isso. Era Mariazinha daqui, Mariazinha dali... No fim da aula, quando tava indo todo mundo embora o menino passou pelo Cruz e gritou ‘Tchau, Mariazinha!’ O Cruz correu atrás do piá, que quando viu aquele menino pequeninho atrás dele, ficou parado olhando o Cruz e rindo. O Cruz parou e deu um chute nas partes do grandão, que se encolheu. Quando ele se encolheu o Cruz encheu a cara do moleque de tapa, soco, até o outro cair, sem entender nada. E o Cruz batia tanto que se cansava, parava, recuperava o fôlego e voltava a bater. Dava dó, o piá todo cheio de sangue na cara. Nessas horas, ele dizia: ‘meu nome é Cruz, seu fiadaputa!’ Teve de vir um professor pra tirar o Cruz de cima do outro, que nunca mais voltou pra escola. E como todo mundo ficou com medo de tomar bordoada do Cruz, a gente respeitou.”
“E a mãe dele?”
“Então: quando correu a notícia de que o Cruz, pequenininho, bateu num moleque maior do que ele, a mãe dele quis saber o que tinha acontecido. E o Cruz disse pra ela que nunca mais queria que ninguém chamasse ele por esse nome, nem mesmo a mãe dele; e que se ela chamasse ele assim, ele ia fugir e nunca mais ninguém ia ver ele. Diz que ele falou assim pra ela: ‘Meu nome agora é Cruz.’ E assim foi, nunca mais ninguém chamou ele pelo outro nome, nem a mãe.”
“E ele se dá com ela?”
“Nossa, o Cruz morre pela mãe dele. Ainda mais que ele tem um irmão vagabundo, maconheiro.”
“Nossa...”
“É... pra senhora ter uma idéia, o Cruz juntou dinheiro a vida inteira pra dar uma casa pra mãe, só que justo quando a coitada comprou um terreninho pra construir, era um golpe. Perdeu todo o dinheiro que o cara juntou na vida. Acredita nisso?”
“E faz tempo isso?”
“Nada! Saiu no jornal esses dias, um tal de Valdomiro não-sei-do-quê.”
“Renato Borges Júnior?”
“Acho que é, não lembro.”
“Então é por isso que o Cruz está lá com ele...”
“Deve ser, né?”
“É... Bom, vamos gravar, então? Eu só vou perguntar como ele é e o que o senhor é dele, certo?”
“Tá bom! Posso só dar uma penteada no meu cabelo?”
“Claro!”

6


“Namorado famoso, hein?”
“Ex-namorado, né, Creide?”
“Tô brincando, boba! Mas porque vocês terminaram?”
“Olha só: a gente tava na fila pro cinema, e aí apareceu um rapazinho oferecendo livrinhos infantis. Quando ele chegou na gente o Cruz nem deixou ele terminar de falar, e sem olhar pro menino disse, seco ‘Não quero, brigado’, daquele jeito dele... Aí eu falei pro Cruz ‘pra quê isso?’ e ele ‘pra que o quê?’ ‘pra que ser grosso desse jeito com o menino... não vê que ele tá trabalhando?’ ‘tá e o que você quer que eu faça? Que eu compre a porra de um livro pra criança, sendo que nem conheço criança nenhuma?’ ‘tem o filho do Zinho’ ‘ah comprar livro pro filho do chefe? Você tá louca. E ainda ter de ficar andando carregando essa bosta...’ ‘tá, né... mas podia ter sido mais educado com o moço... comprar um só pra ajudar, nem que não desse pra ninguém...’ o Cruz olhou pro chão, contrariado e chamou o menino ‘ei, ei, vem aqui.’ O menino veio e ele perguntou: ‘quantos livros você tem aí?’ o menino falou ‘senhor?’ e o Cruz repetiu: ‘quantos livros você tem aí?’ ‘eu?’ ‘putaqueospariu, não, meu... eu. Claro que é você... você não tá vendendo essas merda desses livro? Quantos você tem aí?’ Aí o piá contou: tinha doze livros. O Cruz perguntou: ‘Quanto você quer por todos?’, e o piá disse ‘Cada um é R$ 4,90..., então dá R$ 80,00’. ‘Peraí...’ o Cruz fez as contas e disse: ‘E desde quando que 5 vezes 12 dá 80?’ ‘Te dô 30 por todos eles.’ ‘Cinquenta’. ’Quarenta.’ ‘Fechado.’ Aí o Cruz pegou aqueles livrinhos e me disse ‘toma, põe aí na tua bolsa.’ E eu: ‘por quê? Eu não comprei.’ ‘É, mas quis que eu comprasse, então eles agora são teus.’ ‘Meus nada. Eu te disse pra comprar um pra ajudar o menino, não pra bancar a Madre Tereza....’ Olha, o Cruz, só matando... desde esse dia a gente não se falou mais... até me ligou, mas eu não quis atender. Já faz duas semanas. E agora tá ele aí, na televisão, fazendo besteira...”

7


“Ai, meu Senhor, protege esse meu menino. Tão honesto, trabalhador. É um pouco esquentado, eu sei, mas ele não merece as coisas ruins que acontecem pra ele. Não deixa a polícia bater nele, que ele não sofra na prisão, que o coitado só ta querendo fazer justiça. Ah, minha Nossa Senhora, que desgraça eu ter comprado o terreno daquele safado que levou o dinheirinho que o Cruz juntou pra eu comprar a minha casinha... agora lá tá ele, na mão do Cruz.... que meu menino não faça besteira de se sujar com o sangue desse desgraçado. Só queria saber, meu Jesus, como foi que o Cruz foi parar naquele prédio com o revólver na cabeça desse homem.”

8


Cruz dirigia tranqüilo até o aeroporto para pegar uma encomenda para a loja. Esta era a última coisa que precisava fazer naquele dia. Cruz ria sozinho ao volante, lembrando-se da reprimenda que dera no filho mais velho de Zinho, que tinha 13 anos, mas agia como uma criança de cinco, e que insistia em querer brincar com a calculadora que Cruz usava no trabalho. O menino disse “Cruz, deixa eu fazer conta na calculadora!” e Cruz repetiu a pergunta como se o menino fosse tivesse a voz de um doente mental: “Dessa eu azê tonta na taltuladoua!”. O menino continuou insistindo “Deixa, eu quero brincar com ela!” “Não, piá. Isso aqui não é brinquedo. Você não tem pinto? Vá brincar com ele! Na tua idade eu já tava correndo atrás das meninas... só podia ser filho do Zinho, mesmo... Vaza daqui, piá do cacete!” E o menino vazou, dizendo que ia falar pro pai.
Cruz chegou ao aeroporto, apanhou a encomenda e quando terminava de guardar o material na van, viu que do carro ao lado saiu um homem elegante, de terno e gravata, e com óculos escuros, carregando uma valise. Dava pra ver que ele estava apressado, pois quando passou pro Cruz derrubou um caderninho. Cruz, na hora chamou o homem e disse “Ei, amigo! Você deixou cair um negócio!” O homem virou e viu que realmente derrubara algo “Nossa! Obrigado! Imagine perder o passaporte numa hora dessas, ainda mais que eu estou em cima da hora para o meu vôo!” “Ah, é verdade!” “Muito obrigado, viu?” “Não foi nada! Boa viagem!” Cruz achou o homem familiar e ia entrar na van quando estremeceu: aquele era o estelionatário filho-da-puta que tinha roubado o dinheiro dele e da mãe dele, cujo rosto ele havia visto no telejornal.
Como uma chance de vingança dessas não aparece a qualquer hora, Cruz achou melhor saboreá-la. Foi atrás do homem com passos rápidos, mas sem que este percebesse. Felizmente, para Cruz, haviam estacionado em um ponto ermo e longe da saída, o que facilitaria as coisas. Em exatos quatorze segundos de caminhada Cruz deu uma chave de braço no estelionatário perguntando-lhe o seu nome: “Como é o teu nome?” “Não interessa! Solta o meu braço ou eu chamo a polícia, gorila do caralho!” “Você quer mesmo chamar a polícia, seu ladrão filho da puta? Grita e eu te quebro o braço. Escolhe, cuzão.” Valdomiro Renato Borges Júnior viu que graças a Cruz, seu vôo estava perdido. Teria de pensar em alguma forma de se livrar daquela situação. A melhor coisa que poderia fazer naquela hora seria tentar ver o que aquele homem grande, forte, furioso e fedendo a trabalho braçal iria fazer com ele.
“Vamos conversar?” – Valdomiro quis negociar.
“Vamos. Na casa do caralho, lazarento. Quero te ver na capa da Tribuna amanhã, seu escroto.”
“Cara, eu não lembro de ter pego teu dinheiro.”
“Você não pegou de mim. Pegou da minha mãe. Trabalhei pra cacete, aguentei muito o merda do meu chefe pra ela poder comprar o terreno falso que você vendeu pra ela.”
“Então vamos na minha casa, lá eu tenho parte do dinheiro escondida ainda. Eu te dou tudo e você me deixa escapar.”
Cruz achou que seria bom ver até onde o homem iria com aquela conversa e topou. Botou o homem pra dirigir a van, enquanto espetava a barriga dele com uma chave de fenda: “Se tentar qualquer gracinha, tuas tripas vão passear de van fora de você, beleza? E tira o cinto de segurança, porque se você tentar bater a van, quem vai se foder vai ser você, seu bosta.”
Agora vamos até o teu mocó, lazarento.”
Nessa hora tocou o celular de Cruz. Era Zinho: “Porra, Cruz, cadê a encomenda? O cliente tá aqui!” “Agora não posso ir. Tô resolvendo um problema particular. Manda o cliente tomar no cu, porque ele não vai usar ferramenta nenhuma às 5 e meia da tarde. Tchau.” E desligou o telefone.

* * *


Zinho colocou o telefone no gancho. O cliente então perguntou: “E aí? O que ele falou? Tá vindo o material?” Zinho riu e contou: “O cretino me disse pra te mandar tomar no cu, porque você não vai usar ferramenta nenhuma às 5 e meia da tarde... Você acredita nisso?”

* * *


Na van, o homem tirou o cinto, e dirigiu cuidadosamente e em silêncio, até o prédio onde morava. Entraram no edifício sem que o porteiro desconfiasse do que estava acontecendo. O homem entrou primeiro no elevador e apertou o botão do primeiro andar. Cruz falou: “Você mora no primeiro andar?” “Sim.” “Porra, mas com a grana que você tem por que não comprou no último andar? Não tinha mais pra vender?” “Até tinha, mas eu tenho medo de altura.” “E como que você ia fugir de avião?” “Pra salvar o rabo, a gente faz de tudo.” “Tô vendo.”
Saíram do elevador e o homem abriu a porta do apartamento. Quase não havia móveis ali. “Porra, meu, mas nem pra fazer uma casa decente? Aqui só tem garrafa e caixa de pizza! Que fedor! Você é porquinho, hein?”
“Eu não comprei isso aqui pra eu morar pra sempre.”
“É, to ligado. Cadê a grana da minha mãe, paga-pau?”
“Tá no quarto, vamos lá.”
“Sem gracinha que eu te encho de porrada.”
“Claro, claro.”
Ao entrarem no quarto o homem apanhou um revólver sobre a cama, mas Cruz conseguiu dar dois tapas que não só tiraram a arma da mão do homem, como o derrubaram no chão.
“Mas você é um bosta mesmo. Cadê o dinheiro?”
O homem apontou para uma mala no canto do quarto. Cruz mandou-o pegar. E que não aprontasse de novo, porque agora ele tava com o dedo coçando pra sentar bala na bunda do vagabundo. Valdomiro foi e pegou a mala.
“Abre ela pra eu ver.”
Valdomiro abriu e mostrou os maços de dinheiro que estavam ali.
“Filho da puta... quanta gente você lesou, hein?”
O homem ficou quieto. Cruz então teve uma idéia. Pegou uma fita adesiva que estava sobre a mesa e falou: “Já que você gosta tanto de dinheiro, vou prender a mala em você com essa fita aqui.” Deu então várias voltas com a fita ao redor do peito de Valdomiro até que a mala ficasse bem presa. O estelionatário parecia um paraquedista. “Agora, vamos lá pro terraço. Você tem medo de altura, né? Então vamos ver o quanto de medo você tem. Levanta, vem aqui.”
“Não faz isso, cara. Pega o teu dinheiro e me deixa ir.”
“Eu não sou ladrão igual a você, seu cagão. Não vou pegar dinheiro roubado pra mim. Vem, vamos lá pra cima.”
Iam saindo do quarto quando Valdomiro chutou um pacote, revelando seu conteúdo. Cruz perguntou: "O que é isso?" "Dinamite. Eu roubava banco antes." "Porra, isso tá ficando divertido. Vem aqui, bambi. Deixa eu te enfeitar mais um pouco."

9


O policial no comando da operação está no solo, na frente do edifício onde Valdomiro Renato Borges Júnior mora, quando finalmente ouve o sargento Gomes, que acabara de conversar com Cruz, fazer contato pelo rádio.
“Gomes? E aí? O que é que temos?”
“Xi, comandante, o cara é louco.”
“Por quê? Tá fazendo exigências?”
“Não, quer dizer, mais ou menos... Ele disse que só quer dar um cagaço no estelionatário e que depois ele é nosso. Mas que não é pra ninguém se meter porque senão ele explode tudo.”
“Ele tá com uma bomba, aí?”
“Duas bananas de dinamite.”
“De onde esse filho-da-puta arranjou essa merda?”
“Não sabemos.”
“Putaqueospariu.... E o que ele pretende fazer?”
“Explodir a mala com o dinheiro do estelionatário.”
“Que porra é essa?”
“É que ele é vítima do cara. E ele disse que quer fazer o estelionatário sentir o mesmo desespero que as pessoas sentiram quando elas descobriram que foram roubadas.”
“Como assim?”
“Ahn, não sei, comandante... mas ele quer que o estelionatário pule do prédio.”
“Cacete... O pior é que não podemos meter uma bala no cara por causa da imprensa que tá toda aí, e também porque ele tá fazendo um trabalho de utilidade pública. Faz o seguinte: conversa com ele e dê todas as garantias de que ele vai sair limpo dessa se ele entregar o estelionatário.”
“Entendido, comandante.”

10


Se a polícia ou a televisão vierem falar comigo o Cruz vai se foder. Vou contar que ele é violento, que já me agrediu um monte de vezes e que minha mãe tem medo dele. Vou dizer que virei dependente químico por causa das agressões dele, e que ele é bem capaz de matar alguém só porque contrariaram ele. Ele vai me pagar os tapas e os pescoções que já levei. Eu nunca vou perdoar aquela surra que ele me deu só por causa daquela merda de radinho da mãe. Tomara que ele fique preso até apodrecer, porque se isso acontecer, essa casa vai ser só festa dia e noite.

11


O policial se aproxima de Cruz, que segura o homem pelo pescoço com a mão esquerda. Nessa mesma mão, está o isqueiro. Com a direita, Cruz aponta a arma para a cabeça de Valdomiro Renato Borges Júnior. Este tem a mala com dinheiro e dinamite presos ao seu peito com fita adesiva. Os pavios das bananas de explosivos estão para fora da mala. O sargento Gomes levanta as mãos para mostrar que está desarmado e que quer somente conversar.
“Amigo, eu tô aqui pra gente conversar e resolver tudo da melhor forma possível.”
“Eu sei. Mas já falei, antes eu quero dar um cagaço nele.”
“Tá, mas eu acho que você já deu.”
“Será?”
“Sim. Olha, ele tá tremendo.”
“Porra, é mesmo! Ha ha ha! Mas é um cagão mesmo...”
“Então. Entrega ele, e você sai limpo dessa. Entrega ele pra gente. A gente vai te liberar. Você fez um grande favor pra nós. Tem um monte de gente querendo ver o couro desse sacana.”
“Até pode ser, mas antes eu vou explodir esse dinheiro, pra ele aprender que dinheiro roubado não vale nada.”
“Mas se você fizer isso, aí você pode ir preso mesmo. Sem falar que todos nós podemos morrer, até mesmo você!”
“Ah, é?”
“É... É crime queimar dinheiro. E é crime seqüestrar, apontar arma pra cabeça dos outros, ameaçar jogar alguém do prédio ou então explodir essa pessoa com dinamite. Você pode se complicar de verdade se não me ouvir.”
“Sério?”
“Sim. É bem sério.”
“Pois então... que se foda!”
E Cruz acendeu a dinamite.