DOR DE DENTE
Cézar acordou cansado de uma noite mal-dormida, e percebeu que na verdade fôra uma dorzinha de dente o que o incomodara a madrugada toda. Com serenidade ele pensou que logo a sensação se dissiparia; tomou café, fumou um cigarro, brincou um pouco com sua filhinha, Bê, conversou mais outro tanto com Lúcia, sua mulher, e foi para o trabalho.
Houve momentos em seu dia que ele chegou a esquecer que seu dente existia. O trabalho era duro, e provavelmente este fato teve sua parcela de responsabilidade pela aparente ausência de dor. No começo da noite, algum tempo depois de chegar em casa, moído de cansado e com o corpo já frio depois de um banho, ou seja, quando finalmente estava em condições de perceber quem era de novo, Cézar sentiu o leve desconforto na boca transformar-se numa dor excrusciante. Cézar estava longe de estar em condições de pagar um dentista, especialmente àquela hora, quando todo mundo já está se aninhando no sofá depois de ver o Jornal Nacional. Ele estava começando a pensar em pegar algum dinheiro emprestado com seu irmão ou com sua cunhada para pagar pelo alívio daquilo quando tocou o telefone: era Marcelo, um velho amigo. Lúcia, a mulher de Cézar, atendeu, e entregou o fone ao marido.
“E aeh, Cezinha!? Beleza?”
“Beleja. E voxê?”
“Tranqüilo... e o rock? Baixando muita coisa?”
“Tô meio devagar, andei baxando tanta coija que nem xei maij o que pegar.”
“Ô cara: desculpa a pergunta, mas você tá meio lôco, né? Cê tá com uma voz de chapado..., parece que tá com alguma coisa na boca...”
“Não, cara... tô com uma dor de dente filha da puta...”
“Putz, cara, dor de dente é o bicho... pôrra, a Lúcia não falou nada... pô, desculpa aí, vai descansar, cara, que quando a gente tá com dor, a gente não quer saber de nada. Cara, você não tem aí como ir num dentista?”
“Tenho, meu xogro tá em caja, é aqui perto, e meu irmão mora aqui do lado também, qualquer coija eu falo com algum delej.”
“Então beleza. Melhoras pra você. Dá um beijo na Bê e na Lúcia, tá?”
“Xó. Valeu. Falô.”
Cézar desligou o telefone e foi deitar, pra ver se a dor passava. Dois minutos depois, o telefone toca de novo, e é Marcelo mais uma vez. Cézar, começando a ficar de saco cheio, vai atender só por consideração pelo amigo:
“Alô?”
“Cézar, é o seguinte: se você quiser eu saio agora e vou aí te pegar e te levar num dentista. Tudo bem?”
“Ô, cara, valeu, mas não prexija, eu me viro por aqui.”
“Tá, mas se der algum problema aí, me ligue, mas me ligue mesmo. Se você não quiser ir agora, mas o bicho pegar mais tarde, pode ligar. Se precisar, pode me acordar, não tem problema, que eu vou aí e a gente vai num dentista, beleza?”
“Ã-hã, valeu, Marxelo. Xe prexijar eu ligo. Valeu mejmo.”
“Então descanse e ligue, que é nessas horas que a gente tem que poder contar com os amigos.”
“Ã-hã, valeu mejmo.”
“Então, beleza. Ligue aí, certo? Não se acanhe.”
“Ã-hã, ...brigadão.”
“Falou, um abraço, e melhoras.”
“Ã-hã... valeu, Marxelo.”
Cézar desligou o telefone de novo, e voltou a se deitar. Falou para Lúcia que ia subir pro quarto e que queria ficar sozinho, sem barulho. Lúcia concordou e ficou na parte de baixo da casa com Bê.
Cézar tremia de dor. Queria morrer, se isso fizesse ele parar de sentir aquela dor infernal. Tinha vontade de gritar, urrar. Chegou a pensar em pegar o alicate e arrancar aquela merda daquele dente, mesmo sem saber qual deles estava doendo... queria era arrancar a boca toda fora, arrancar o que quer que fosse, mas que fizesse aquela dor parar. Quase levantou para ligar para Marcelo para ir a um dentista, mas o Marcelo morava no outro lado da cidade. Se bem que àquela hora não tinha tanto trânsito assim, então ele ia levar uns quinze ou vinte minutos pra chegar. Cézar procurava uma saída do meio daquele redemoinho de desespero quando viu um cara com um cabelo grande em seu quarto. O cara era jovem, com certeza tinha menos de trinta, não muito alto, magrelo, mal vestido, parecia que tinha saído de algum filme de gangues dos anos 70. Cézar ficou tão assustado com a visão que perdeu a voz, queria gritar mas não conseguia; queria entender como aquele cara tinha entrado ali – “ladrão filho-da-puta!” – pensou Cézar. O cara estendeu a mão para ele e disse:
“Fica tranqüilo, cara. Não sou ladrão, não. Sou amigo. Você não tá me reconhecendo?” Cézar fez que não com a cabeça; “Pôrra você até fez uma coletânea da minha banda esses dias... Eu sou o Bon Scott, do ACDC.”
Cézar arregalou os olhos: Bon Scott morrera em 1980, afogado no próprio vômito de tão bêbado. Cézar queria ter certeza de que estava sonhando, e queria acordar rapidinho, mas a visão era bem real.
“Cara, eu sei como é que é dor de dente. É foda. Não há nada que resolva, a não ser ir pro dentista e pagar uma grana pra ele meter qualquer merda na tua boca pra cortar a dor e fazer você ficar se sentindo um bebê chorão. Olha, eu vô te contar uma coisa que ninguém sabe: eu só fiquei muito doidão aquele dia, porque eu tava com uma dor de dente do caralho, igual a essa tua. E eu bebi tanto, mas tanto, que a minha dor passou. E fiquei mandando ver – pra mim tudo era farra, you know – até que eu capotei. Só que no fim, eu me fodi: dormi de barriga pra cima, sozinho, vomitei que nem um porco, parecia um chafariz de vômito, há! há! há! – e agora tô aqui. Foda, né cara? Putz...”
Cézar, mais calmo, tentando se refazer do susto, conseguiu perguntar:
“Voxê foi pro xéu?
“Olha cara, não acredita nessas coisas de céu e inferno que falam, porque não é bem assim. É uma pira, quando você vier pra cá você vai ver. Não esquenta com isso agora, não. Pro inferno, inferno, que nem todo mundo fala, ninguém vai não. Eu, que fiz um monte de cagada, não fui.”
“Cara... oxê fala portuguêj aí onde xê tá?”
“Aqui a gente fala o que a gente quiser. Língua não é problema aqui. Bom, eu tenho que ir, mas antes preciso te dizer uma coisa. Eu sei que você é chegado numas birita: uma cervejinha, uma cuba, coisa e tal. Pô: faz um copão de cuba, mais rum que Coca, que você vai ver: é capaz de amanhã você estar ainda melhor que antes.”
“Maj eu não faxo cuba com rum.”
“Quê que cê usa?”
“Pinga.”
“Pinga?”
“É. Cachaça, conhexe? É de cana também.”
“Aaahh... sugarcane. Tô ligado. Nunca tomei. Deve ser forte, né?
“É.”
“Então, faz a cuba com mais pinga que Coca. Só não me faça a cagada de ir dormir sozinho e com a barriga pra cima...”
“Não, eu nem conxigo fazer isso, xó durmo de lado. E eu xô cajado, vô dormir ca minha patroagem...”
“Tô ligado... bom, muito bom. Então, falou cara. Tudo de bom. Mais pinga que Coca, hein? Falou! See ya!”
E, diante dos olhos de Cézar, Bon Scott sumiu. Cézar levantou-se e foi até a cozinha. Sem falar nada, pegou a Coca e a pinga, fez uma cuba digna de nota no maior copo que tinha na casa: quase meio litro de água benta que passarinho não bebe, e em que Cézar acreditava ser capaz de operar um milagre. Sob a mira dos olhares silenciosos de Bê e Lúcia, virou em dois ou três minutos o copo todo. Chegou a achar que ia vomitar, pois bebeu rápido demais – e lembrou-se das palavras de Bon. Então disse:
“Ô, Lúxia: não me deixa ficar de barriga pra xima.” A mulher fez que sim com a cabeça.
Estava bêbado o suficiente para cair na cama e desmaiar. Até a manhã seguinte.
* * *
Na manhã seguinte, Cézar lamentava consigo mesmo: pena não poder contar pra ninguém: quem ia acreditar naquilo? Qualquer um ia dizer que foi um delírio, uma alucinação; mas ele sabia que não era. Bon Scott esteve ali. De qualquer forma, isso nem era tão importante assim, depois de tudo o que passara: sentia que poderia ser um homem feliz – com uma leve ressaca, claro – mas feliz, e descobriu que no fundo de sua boca uma merda de um dente do siso estava apontando, e que isso tinha lhe proporcionado duas coisas, uma boa e outra ruim. A ruim, obviamente, fora aquela dor diabólica; a boa, a visita de um angelical Bon Scott, que lhe salvara a vida usando a mesma receita que um dia o levara à sua Highway to Hell.
EPÍLOGO
No ano de 2.177, Bon Scott fôra finalmente beatificado pelo Sumo Pontífice, devido ao grande número de graças recebidas por pessoas das mais diversas partes do mundo, todas atribuídas ao bom vocalista. A história era sempre a mesma: depois de o terem visto, e recebido dele as santas palavras para a cura: “mais rum que Coca” para a maioria, “mais pinga que Coca” para os brasileiros.
Conjunto Novo Mundo, 22 de setembro de 2006.
4 Comments:
Muito divertido, Claudio. Dei boas risadas...
Mas, convenhamos,... "patroagem"????? Está realmente procurando encrenca!
domingo, janeiro 21, 2007 1:32:00 PM
Taís, essa é uma história real. Por isso, os fatos e falas desse relato dramático que mistura dor e humor foram descritos de maneira fiel. Nada foi inventado. Hehehe
segunda-feira, janeiro 22, 2007 3:34:00 AM
Se o indivíduo realmente usa esses termos para se referir à mulher, então a dor que sentiu foi bem merecida. Castigo dos céus! Hahaha!
Já li os outros textos e estou me divertindo muito. Bobagens na medida certa...
Um abraço!
segunda-feira, janeiro 22, 2007 11:39:00 AM
po cara estou ak com baita dor de dente e li este conto ate que ela passou mais não sei naõ se a pinga com a coca vai resolver....so sei que a melhora e o belo botição do dentista na minha boca amanhã logo cedo.
terça-feira, dezembro 09, 2008 9:41:00 PM
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