ELES ESTÃO NAS RUAS
Eles estão nas ruas. Sim, estão. Posso vê-los e percebo que eles também me vêem, embora tentem disfarçar. Quando consigo encará-los diretamente nos olhos, eles desviam o olhar. Às vezes divirto-me contando em silêncio quantos deles estão escondidos atrás de postes, dentro de lojas, por trás dos balcões. Nem todos se esquivam; há alguns deles que, orgulhosos, não se importam em saber que os observo; são tão ousados que chegam até mesmo a tentar intimidar-me com gestos ameaçadores. Com estes eu não acho uma idéia de todo boa manter minha pose, e nestes momentos sou eu quem faz-se de desentendido, mesmo tendo a meu favor – e isso realmente me espanta – o fato de nunca ter sido tocado de maneira alguma por nenhum deles. O máximo que fazem depois de todo esse tempo é aproximar-se.
Aliás, aqueles que se aproximam são justamente os cantores; quer dizer: não sei se de fato são cantores, mas suas gargantas emitem sons tão estranhos quanto belos. Não conheço nenhuma das melodias que eles produzem, pois nunca as repetem; são sempre músicas novas e cada uma delas produz em mim efeitos indescritíveis; há timbres que permanecem em meus ouvidos por semanas; tons que me fazem arrepiar quando deles me lembro, e que talvez me causem tanto prazer apenas por sua beleza simples e incompreensível.
Na primeira vez que os vi, eles estavam em frente à janela do meu quarto. Eram dois e não me pareceram antipáticos. Tinham um ar gentil, algo distante, mas não pareciam estar exatamente à vontade. Chamei meus pais para vê-los, mas minha mãe disse que não via nada. Meu pai disse que os via, e me acalmou dizendo que eu não devia preocupar-me, afinal eles podiam estar ali perdidos e precisando de ajuda. Gostei de ouvir isto; afinal, pessoas que precisam de ajuda não podem fazer mal a alguém como eu.
Depois de uns dois ou três dias eu os vi novamente, mas não eram os mesmos. Novamente avisei meu pai de que eles estavam ali, e de que novamente eles tinham aquele olhar de quem carece de socorro. Entretanto eu descobri que o meu pai mentira quando disse que também os enxergava, pois lhe perguntei se via que um deles não parava de se coçar e ele prontamente confirmou; pura invenção minha, ninguém se coçava ali senão meu próprio pai. Passei a observá-lo mais atentamente, mas não vi nada de anormal além do fato de ele insistir para minha mãe vê-los, mas ela continuava a dizer que não tinha ninguém ali na nossa frente, no portão de casa.
Não muito tempo depois, tomei coragem e fui até eles para conversarmos um pouco, pois já éramos vizinhos há algum tempo. Foi essa a primeira ocasião em que eu escutei seu canto; resposta mesmo, nunca ouvi.
Houve um tempo em que eu me convenci de que não os veria mais; foi quando meu pai e minha mãe levaram-me a um homem que me pediu que lhe contasse o que eu sabia sobre eles. Falei de tudo: de suas caras de quem precisa de ajuda e de seu canto; falei que eles se escondiam de mim nas ruas e de que minha mãe não os via, e de que meu pai mentia para mim dizendo que sim. O homem conversou com meu pai em separado e tenho quase certeza de que foi este homem quem o convenceu a me dar umas pílulas para tomar. Quando relacionei às pílulas o fato de não vê-los mais, comecei a fazer de conta que as tomava e, assim, alguns dias depois, lá estavam eles novamente. Sempre me vem à memória a alegria que foi para mim poder revê-los, e imagino o tamanho de meu sorriso ao tê-los em frente aos meus olhos. Em todo caso, por precaução, não falei nada aos meus pais; estes não me parecem precisar de ajuda, por isso, fazendo uma relação entre os fatos, julgo que podem fazer mal aos outros. Quanto aos meus caros cantores... houve uma vez em que eu cortei minha mão num copo quebrado; então percebi que atrás de mim estava um deles. Olhei para ele, segurando minha mão sangrando e, quando pensei que ele fosse me ajudar, ele começou a cantar e de repente eu senti que era até mesmo gostoso ficar ali, sangrando, com aquela música nos ouvidos.
Acho curioso que quando estou triste eles costumam evitar-me; porém se meu estado de ânimo é de contentamento, facilmente percebo que aqueles mais ameaçadores tornam-se mais ameaçadores do que nunca. De qualquer maneira isto deve ser bom, pois se eles não gostam de ficar perto de mim na tristeza é porque eles também não gostam de ficar tristes, mas ainda assim estranho a sua reação na minha alegria.
O fato é que sua presença, acolhedora ou não, conforta-me. Sinto-me vivo com eles por perto, com ou sem suas músicas e sons. Dedico a eles grande parte de meu tempo, pois não tenho grandes ocupações, tampouco pretendo tê-las. Minha mãe faz quase todo o serviço da casa por mim e eu nunca tive um emprego – coisa que aliás nem quero. Com os olhos grudados no espelho posso ver que meu rosto toma formas que às vezes se parecem com as dos rostos de alguns deles, o que me deixa feliz; faço então uma cara de bravo; depois, cara de triste e de indiferente.
Minha mãe ainda me dá as pílulas para eu não tomar e meu pai fica tentando me enganar dizendo que os vê. Fico furioso quando ele me pede para contar a estranhos histórias sobre eles, então eu não conto, nem nunca mais vou contar. Eles que não pensem que vão conseguir tirar de mim a única coisa que me importa em minha vida. E é por isso que não durmo há duas noites: só pensando se uso a faca grande da cozinha quando os dois estiverem dormindo, ou se ponho veneno de rato na sopa.