EU NÃO GOSTO DE ENCRENCAS, MAS ELAS GOSTAM DE MIM.

terça-feira, março 06, 2007

REVERÊNCIA

Eu tinha 8 para 9 anos quando meu pai comprou essa chácara. A segunda visita que ele fez a esse lugar foi para confirmar a compra, e eu vim junto. Aliás, não só eu: vieram também o corretor e meu tio, para minha infelicidade. Nunca gostei desse último: ele me achava mimado, chato, chorão. E eu sabia que não era nenhuma das três coisas.
Fiquei empolgado com o tamanho do terreno, mas o que me chamou atenção mesmo foi essa pequena casa nos fundos. Este paiolzinho, com a pintura de cal já gasta... Na casa do meu avô havia um igual, cheio de ferramentas, e eu adorava brincar com elas.
Naquele dia o ar estava gelado. Lembro bem do capim molhando a barra da minha calça enquanto eu vinha. Foi quando ouvi um grito de dor vindo daqui de dentro. Como sempre fui mais curioso que medroso, apressei o passo e abri a porta. A cena era ao mesmo tempo estarrecedora e fascinante para um menino da minha idade: um homem fedendo a suor e urina, de cabelos e barba longos e sujos, desgrenhados; na mão direita um martelo, enquanto que a esquerda estava pregada à parede, como que crucificado. Eu não disse nada, apenas fiquei de boca aberta olhando aquilo.
O homem se desculpou, explicando com sofreguidão: “Mas eu sou um estúpido mesmo... Vim aqui, e na minha ingenuidade esqueci que para pregar as duas mãos seriam necessários dois homens... Se eu preguei uma mão, sozinho, como é que eu ia pregar a outra?” Ele deu uma meia risada com seus dentes escuros. Então disse: “Você pode me ajudar? Você já é um hominho, deve conseguir pregar a minha outra mão na parede, não?”
Eu fiz que sim com a cabeça, então me apontou um prego enorme e escuro sobre uma mesinha que havia ali naquele canto. Eu perguntei então a ele: “Por que você tá fazendo isso?” Ele me respondeu com uma profusão de palavrões e nomes de santos, Jesus, Nossa Senhora, da qual eu não entendi nada. Depois me indicou no chão um pequeno pedaço roliço de madeira e disse para que eu o colocasse em sua boca, pra ajudar a abafar o grito; entreguei-o a ele, que pôs a madeirinha entre os dentes. Perguntei então se ele estava pronto, e ele confirmou com a cabeça. Peguei o martelo e o prego e preguei a mão do homem. Com toda a força que os braços de um menino de 8 anos podem ter, dei uma, duas, três, quatro, cinco marteladas. O sangue quente daquela mão dura de calos e unhas sujas pulou em meu rosto, mas não me importei. Queria apenas ajudar o homem a cumprir sua vontade. Quando terminei a tarefa, olhei para seu rosto: o homem olhava para o chão; dos olhos saíam lágrimas de dor, e de sua boca caiu o galho, enquanto uma baba grossa escorria. Então eu perguntei ‘tá bom assim?’ e ele não disse nada, apenas confirmou meneando a cabeça. Sentindo que já tinha feito o que devia fazer, deixei o homem. Fechei a porta do paiol, e entre febril e muito assustado, voltei para a casa.
Meu pai, meu tio e o corretor se assustaram com a minha palidez e com o sangue no meu rosto e blusa, e me perguntaram o que houve. Eu disse que caí de cara no chão, e meu tio fez uma piada grosseira, da qual meu pai não riu, preocupado comigo. Ele insistiu para irmos ao médico e eu falei que só queria ir para casa. Os dois se despediram do corretor, com meu pai muito feliz pela compra e meu tio já fazendo planos para os finais de semana com toda a família.
Jamais entrei aqui de novo. Hoje, porém... nunca tinha precisado entender o que aconteceu, e muito menos quis contar para alguém. Tanta coisa estranha já me aconteceu, que essa foi só mais uma. Mas agora que sou um homem velho, quero saber como é. E é por isso que quero que você me ajude: uma mão eu já preguei. Você é um bom menino, é quase um hominho... o martelo está aqui... o prego é aquele grande, sobre a mesa. Você consegue pregar a minha outra mão, não consegue?