CABEÇA NA PRIVADA
Davi começou a semana fazendo o de sempre: foi curar a ressaca do porre de domingo à noite com o porre matinal de segunda. Fazia isso a três quadras de seu apartamento - no Sem Dente, um boteco sujo batizado com o apelido de seu dono.
Entretido na função curativa, Davi sentiu uma pontada na barriga que denunciava a necessidade de aliviar seus intestinos. No entanto havia ali um entrave: o banheiro do Sem Dente era famoso por sua insalubridade. Havia a lenda de um bêbado de rua que tinha um cachorrinho: onde quer que o homem fosse, seu amiguinho o acompanhava. Um dia, quando o mendigo entrou no banheiro, o cão parou, cheirou atentamente o ar e saiu ganindo. O dono do bar confirmava a história, mas dizia que era frescura do cachorro.
Pois era um banheiro em tais condições que Davi se recusava a usar. Por isso, jogou no balcão o dinheiro das duas pingas que tomara e se pôs a correr para casa. Davi tinha calafrios, e sentia uma cólica infernal. Era eminente de que ia se borrar no meio da rua, até que se deu conta de que a casa de seu amigo Rique era mais perto que a sua, bastava dobrar a primeira esquina à esquerda. Apesar de burro e traficante, Rique tinha bom coração.
Quando Davi chegou em frente ao portão da casa, Rique estava na janela fumando. Abriu o portão e foi entrando dizendo “Cara, me ajude!” Rique mal abriu a porta e Davi, corpulento que era, empurrou o rapaz e correu pro banheiro anunciando “Sai da frente que eu preciso do teu banheiro!” Rique, aturdido, tentou parar Davi, mas não foi possível. Sem fechar a porta direito, Davi ergueu a tampa da privada, e quando foi baixar as calças viu o que Rique queria esconder: havia uma cabeça na privada. Uma cabeça de mulher, de cabelos curtos e aloirados, dentes grandes, pele morena, com grandes brincos de argola nas orelhas. Davi, paralisado e surpreendentemente constipado, perguntou “O que que é isso?” “Uma cabeça”, disse Rique. “Isso eu sei, mas o que ela tá fazendo aí?” “É uma história meio longa... é que ela disse que ia fazer uma macumba pra mim, e tudo ia ficar ruim pra mim e pro meu pai. E eu não achei lugar melhor pra guardar. E ali dentro ela não ia fazer sujeira, né?” “E por isso você cortou a cabeça dela?” “É... não... mais ou menos.” “Acho que é melhor eu não saber muito sobre isso, né?” “É.” “Rique... você tira ela daí pra eu cagar?” “Não vai dar... mas você pode ir lá no quintal. Só te peço pra daí enterrar.” “A cabeça?” “Não, a tua bosta.” “Ah, claro, claro. Tem pá, lá atrás?” “Tem. Tá do lado da porta.” “Certo. Posso perguntar uma coisa?” “Pode.” “Foi você que cortou a cabeça dela?” “Mais ou menos.” “Como assim? Cortou ou não cortou?” “Quem cortou foi o meu pai, eu só segurei.” “Mas ela tava viva?” “Antes de meu pai matar ela, tava.” “Tá, vou perguntar de novo: quando vocês cortaram a cabeça dela, ela tava viva?” “Ah, não. Meu pai deu um tiro nela, e sumiu com o corpo. Mas antes eu pedi pra ele cortar a cabeça. É que eu sempre quis ter uma caveira no meu quarto.” “Por que não compra uma de gesso?” “Ah, não é a mesma coisa.” “É, é verdade... bem, vou lá atrás e depois a gente conversa, tá?” “Beleza. Mas enterra bem, que se meu pai sabe que você teve aqui, vai me encher o saco e é capaz de querer te matar também.” “Pode deixar.”
Davi foi para os fundos se aliviar, enterrou o que devia ser enterrado e, quando ia chamar o dono da casa para dizer que terminara e ia embora, percebeu as figuras de dois policiais militares prendendo Rique. Achou melhor não aparecer, pulou o muro dos fundos, saiu em outra casa, onde um cachorro lhe abanou o rabo, pulou outro muro e estava na rua. Sentindo-se livre, voltou ao Sem Dente, pois o que vira fora muito pra sua cabeça, e uma cervejinha sempre relaxa.