O EREMITA
O centro de Curitiba às seis da tarde de sexta-feira produz uma avalanche sônica. E Isaak estava ali, andando e sendo soterrado por esse monstro.
Ia cansado, desesperançoso e entediado dos outros. Esperou em pé na fila pelo seu ônibus, ouvindo um velho conhecido falar. Dentro do ônibus, ainda em pé, o pobre ouviu o chato até o fim de sua viagem. Isaak não gostava de conversar no ônibus com pessoas de quem ele não gostasse muito; muitas vezes chegara a descer em um ponto qualquer no desespero de ter de trocar palavras inúteis com estranhos conhecidos.
Chegou em casa extenuado e ficou ainda mais quando percebeu que o lugar estava tomado pelo grupo de amigos de seus pais, que todas as sextas-feiras invadiam a casa de um dos integrantes da turma para jogar baralho. Isaak cumprimentou todos com um só “Oi, pessoal, tudo bem?”, e todos responderam “Oi, Isaak, tudo bem?”. Isaak beijou seu pai, sua mãe e foi para o quarto. Ficou com preguiça de tomar banho, embora ansiasse muito por um, deitou de costas sobre as mãos e ficou olhando para o teto, pensando no seu destino: a convivência com os outros e a vida prática o deixavam louco, como pernilongos numa noite de calor e de insônia. Isaak arquitetava.
Um mês depois, Isaak forçou sua própria demissão, e com a sua indenização mais algumas economias, saiu de casa. Os pais protestaram, não entendendo. Isaak disse que depois voltaria para deixar seu endereço, e sumiu.
Isaak alugou uma pequena meia-água atrás da casa de uma senhora, em uma rua tranqüila e poeirenta do bairro do Boqueirão. Pagou seis meses de aluguel adiantados e pediu para não ser incomodado, e tudo ficou bem.
A meia-água tinha um quarto com sala e cozinha juntos, e um pequeno banheiro. Isaak a escolheu porque além de escondida, a meia-água também tinha os móveis mais essenciais: pia, mesa, duas cadeiras, fogão, geladeira, cama, guarda-roupa, um sofazinho velho.
No começo, Isaak podia ser visto saindo para comprar comida ou produtos de limpeza e higiene, mas isso não durou muito. O rapaz passava longos períodos imóvel: sentado à mesa após as refeições, deitado na cama pela manhã, sentado no braço do sofá à tarde.
As cortinas sempre fechadas: Isaak nunca olhava pela janela, nem precisava: não havia nada que ele precisasse ver. Isaak mudava: começou a tomar água na privada, como se nunca tivesse sabido para que esta servia, e deixava de preparar seus alimentos, comendo-os crus, nas raras vezes em que sentia fome. Aos poucos o chão era coberto com seus excrementos, e a pestilência tomava o lugar que antes era do ar. Isaak arrancara suas roupas, num acesso de desconforto causado pelo pano. Isaak tornou-se um primata feliz.
Numa madrugada, Isaak acordou, levantou-se do canto em que dormia e viu seu reflexo no espelho da porta do armário. Como se nunca tivesse visto a si mesmo refletido, fez um movimento de tocar a imagem, quando esta, rispidamente, perguntou: “O que você vai fazer?” Isaak soltou um grito simiesco de pavor, e correu para o canto do quarto encolhendo-se e tremendo de medo. A imagem continuou a falar com ele, proferindo um discurso ridículo e absurdo, evocando imagens de dor, ódio e sarcasmo perversamente religioso, que mesmo que Isaak entendesse, não lhe faria a mínima diferença. Depois, mais calmo, o reflexo de Isaak, meneando a cabeça desaprovadoramente, fez um último, “hum” de descaso e, dando de ombros, foi embora.
Isaak ficou ali, esperando a imagem voltar, o que não aconteceu. Algumas horas depois, na madrugada, o rapaz, nu e tremendo de frio, levantou-se do canto onde estivera encolhido até então e cuidadosamente colocou um, dois, três dedos dentro do mundo do espelho, recuando rapidamente. Então, colocou a mão toda uma, duas, cinco, dez vezes. Mais confiante colocou o braço todo, e como que tateando por dentro de uma janela, tocou a parede por dentro. Por último, colocou a cabeça e olhou para o lado esquerdo, depois o direito, para cima e para baixo, e para a frente. O que viu, pouco lhe importou. Depois voltou para o seu canto, deitou e esperou amanhecer para que o sol lhe aquecesse.
Ia cansado, desesperançoso e entediado dos outros. Esperou em pé na fila pelo seu ônibus, ouvindo um velho conhecido falar. Dentro do ônibus, ainda em pé, o pobre ouviu o chato até o fim de sua viagem. Isaak não gostava de conversar no ônibus com pessoas de quem ele não gostasse muito; muitas vezes chegara a descer em um ponto qualquer no desespero de ter de trocar palavras inúteis com estranhos conhecidos.
Chegou em casa extenuado e ficou ainda mais quando percebeu que o lugar estava tomado pelo grupo de amigos de seus pais, que todas as sextas-feiras invadiam a casa de um dos integrantes da turma para jogar baralho. Isaak cumprimentou todos com um só “Oi, pessoal, tudo bem?”, e todos responderam “Oi, Isaak, tudo bem?”. Isaak beijou seu pai, sua mãe e foi para o quarto. Ficou com preguiça de tomar banho, embora ansiasse muito por um, deitou de costas sobre as mãos e ficou olhando para o teto, pensando no seu destino: a convivência com os outros e a vida prática o deixavam louco, como pernilongos numa noite de calor e de insônia. Isaak arquitetava.
Um mês depois, Isaak forçou sua própria demissão, e com a sua indenização mais algumas economias, saiu de casa. Os pais protestaram, não entendendo. Isaak disse que depois voltaria para deixar seu endereço, e sumiu.
Isaak alugou uma pequena meia-água atrás da casa de uma senhora, em uma rua tranqüila e poeirenta do bairro do Boqueirão. Pagou seis meses de aluguel adiantados e pediu para não ser incomodado, e tudo ficou bem.
A meia-água tinha um quarto com sala e cozinha juntos, e um pequeno banheiro. Isaak a escolheu porque além de escondida, a meia-água também tinha os móveis mais essenciais: pia, mesa, duas cadeiras, fogão, geladeira, cama, guarda-roupa, um sofazinho velho.
No começo, Isaak podia ser visto saindo para comprar comida ou produtos de limpeza e higiene, mas isso não durou muito. O rapaz passava longos períodos imóvel: sentado à mesa após as refeições, deitado na cama pela manhã, sentado no braço do sofá à tarde.
As cortinas sempre fechadas: Isaak nunca olhava pela janela, nem precisava: não havia nada que ele precisasse ver. Isaak mudava: começou a tomar água na privada, como se nunca tivesse sabido para que esta servia, e deixava de preparar seus alimentos, comendo-os crus, nas raras vezes em que sentia fome. Aos poucos o chão era coberto com seus excrementos, e a pestilência tomava o lugar que antes era do ar. Isaak arrancara suas roupas, num acesso de desconforto causado pelo pano. Isaak tornou-se um primata feliz.
Numa madrugada, Isaak acordou, levantou-se do canto em que dormia e viu seu reflexo no espelho da porta do armário. Como se nunca tivesse visto a si mesmo refletido, fez um movimento de tocar a imagem, quando esta, rispidamente, perguntou: “O que você vai fazer?” Isaak soltou um grito simiesco de pavor, e correu para o canto do quarto encolhendo-se e tremendo de medo. A imagem continuou a falar com ele, proferindo um discurso ridículo e absurdo, evocando imagens de dor, ódio e sarcasmo perversamente religioso, que mesmo que Isaak entendesse, não lhe faria a mínima diferença. Depois, mais calmo, o reflexo de Isaak, meneando a cabeça desaprovadoramente, fez um último, “hum” de descaso e, dando de ombros, foi embora.
Isaak ficou ali, esperando a imagem voltar, o que não aconteceu. Algumas horas depois, na madrugada, o rapaz, nu e tremendo de frio, levantou-se do canto onde estivera encolhido até então e cuidadosamente colocou um, dois, três dedos dentro do mundo do espelho, recuando rapidamente. Então, colocou a mão toda uma, duas, cinco, dez vezes. Mais confiante colocou o braço todo, e como que tateando por dentro de uma janela, tocou a parede por dentro. Por último, colocou a cabeça e olhou para o lado esquerdo, depois o direito, para cima e para baixo, e para a frente. O que viu, pouco lhe importou. Depois voltou para o seu canto, deitou e esperou amanhecer para que o sol lhe aquecesse.
Paris, 21.03.2005
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