EU NÃO GOSTO DE ENCRENCAS, MAS ELAS GOSTAM DE MIM.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

“BUKOWSKI ONLY KNOWS”

Então: eu tava lá, no nosso sofazinho, dentro do nosso apartamento, vendo um filminho indecente e me aliviando, quando ela começou a bater na porta. Na verdade ela não tava batendo; ela tava ESMURRANDO a porta. E gritando
“Abre essa merda dessa porta, seu filho da puta!”
Interrompi os trabalhos, desliguei o vídeo e, preocupado com os vizinhos, gritei pra ela:
“Enquanto você não parar de gritar eu não abro!”
Daí ela:
“Você é covarde demais pra fazer isso. Mesmo que eu pare você não vai abrir a porta, eu sei. Você tá com quase quarenta anos, e continua agindo feito criança. Aposto que você tá vendo uma daquelas nojeiras de vídeo pornô!”
Puta que o pariu, ela tava certa. Mas é claro que eu não ia lhe dar esse gostinho. Então lá fui eu:
“E se eu abrir a porta e você vir que aqui não tem fita pornô nenhuma? Você me devolve as minhas coisas?”
Ela:
“Que coisas? Aquele monte de revista velha de sacanagem? Agora já era. Faz uma meia hora que foi tudo pro fogo!”
Mas que vaca. Aquelas porra tinham um valor sentimental pra mim. Algumas eu tinha desde os quinze, o meu vô que tinha me dado; eu ainda lembro dele falando “É melhor começar a gostar dessas coisas agora do que esperar demais e virar viado!” Que coisa a sabedoria dos antigos, né? Dramático, eu disse:
“Não acredito! Você acabou de queimar dinheiro! Algumas daquelas revistas eram verdadeiras antigüidades! Eu tava guardando elas como uma garantia pra minha aposentadoria! Sua filha da...” Ela me interrompeu putíssima: “Termina seu filho da puta! Mas vê bem o que você vai dizer. Diz, vai! Você é que é uma antigüidade. Você e essa pança redonda; você e essas manias de adolescente mal-resolvido. Punheteiro! Abre essa merda!” Cara, ela tava muito braba, mas muito mesmo. Ela começou a ficar assim ontem de noite, quando ela me pediu dinheiro pra inteirar a conta de luz e eu disse que não tinha. Mas como que eu ia esperar que ela tivesse achado o meu esconderijo? Isso sem falar que na semana anterior ela já tinha me pego na locadora com uma bela de uma fita pornô indo pra sacola. As revistinhas ela até agüentava, mas os filmes eram demais pra ela.
Ela: “E então punheteiro? Vai abrir ou não?” “Porra, amor, pára com isso. Se ligue, eu tava pensando no NOSSO futuro, quando eu pensei em guardar as revistas.” Enfatizei bem o “nosso” pra ver se amolecia aquele coraçãozinho de pedra. Só que não veio resposta nenhuma. Até perguntei: “Você me ouviu, amor?” Então ela me perguntou: “Desde quando você fuma maconha, Davi?” “O quê?” “Você quer que eu chame a polícia ou vai abrir a porta pra me explicar as coisas direito?” “Do que que ‘cê tá falando?” “Eu tô falando do teu amiguinho Rique, que acabou de me entregar dois baseadinhos e me disse que você só tem que dar cincão pra ele.” “Ele tá aí?” “Tô, Davi!” “E o que que você tá fazendo aqui?” “Porra, meu, cê não lembra, ontem na locadora, na sessão dos por..., eh, lembra, que você disse que queria um bagulhinho pra dar uma relaxada... e que era pra eu vir aqui lá pelas dez, dez e meia, lembra?” Daí ela se meteu na conversa “Porque nesse horário eu já teria saído, né Davi? Só que você esqueceu que hoje é o meu primeiro dia de férias, certo?” Esse Rique era um belo de um bosta filho da puta, isso sim. Putz, foi aí que eu lancei mão de uma das que seriam uma das minhas melhores jogadas: “Amor, você já ouviu falar que a maconha pode ser terapêutica, né?” “E você realmente acha que eu você cair nessa? Será que você é tão burro assim?” “Você acredite ou não, mesmo assim eu vou tentar me curar com essa porra!” “Se curar do quê? Da tua compulsão de se masturbar toda hora?” Bem calmo, soberano até, eu disse: “Não. Eu tô morrendo. Eu tenho câncer. CÂN – CER! Tá me ouvindo? Eu tô MOR–REN–DO. Você não se preocupa mais em me dar prazer, e antes de morrer eu também mereço um pouco de lazer.” Eu nem acreditei que tive a cara de pau de fazer uma merda de rima dessa. E fui em frente, sem trégua: “É, porque quando você tá fudido que nem eu, você não pensa em outra coisa que não seja se curar. Você alguma vez pensou que eu, por trás das coisas que eu faço, que eu podia tá sofrendo? Hein?” Eu soube que peguei a vaca quando ela falou: “E por que você nunca falou sobre isso, amor?” A última vez que ela me chamou de “amor” foi há uns 6 ou 7 meses, quando eu consegui pegar na locadora um filme da Julia Roberts que ainda era lançamento. Eu disse: “Porque você já tá ocupada com o seu emprego, tentando manter a nossa casinha, e eu aqui, desempregado, inútil... pensei que eu podia tentar cuidar desse negócio dentro de mim sozinho, sem precisar arrumar mais uma coisa pra te incomodar, amor... eu não quero vê você sofrer ainda mais, nessa vida fudida...” Daí o Rique gritou “Porra, Davi, cadê os meus cincão?” Ela falou “Rique, mas você é um merda de um desalmado, hein?” O Rique até tentou “Escuta aqui dona, mas...”, mas ela não deixou ele falar e continuou: “Atrás dessa porta tá um homem que pode morrer logo, e você preocupado com cincão? Toma, pega essa merda, e sai daqui!” Putz, eu não tava acreditando naquilo: ela me defendendo e ainda pagando o meu bagulho! Aí ela me disse: “Ai amor, eu tô me sentindo tão culpada por você estar sofrendo sozinho esse tempo todo...” Ela tava chorando! Eu não agüentei e abri a porta.
Ela tava ali, muito séria, me apontando uma arma; o Rique tava um pouco atrás, só olhando. Ela deu um tiro, que pegou num enfeite de louça em cima da mesa. Cara, eu fiquei com tanto medo que me mijei. Ela começou a rir de mim, e foi entrando na sala, até tropeçar numa caixa de fita da locadora, que eu, muito burro, tinha esquecido de esconder. Ela se abaixou, pegou a caixa, leu o título do filme, jogou a caixa de volta no chão e atirou em mim mais duas vezes, só que dessa vez as balas me pegaram. Uma na coxa direita, e outra de raspão, na barriga, também do lado direito. Só ouvi o Rique dizendo “Caralho, Davi! Tua mulher é louca. Tchau mesmo!” Ele saiu, e ela quando viu o sangue se assustou e começou a se desesperar. Eu só disse “Me leve pro hospital, louca.”, e ela me obedeceu. No táxi ela ficou dizendo que eu tinha provocado ela, e que não queria me perder, e toda aquela bobajada de arrumar emprego e sossegar o rabo, parar com as cachaça e com as putaria, e todas essas merda. Eu tava com tanta dor que eu não conseguia responder. No hospital foi tudo bem e, claro, nenhum ferimento era sério.
Quando a gente chegou em casa, ela viu a caixa da fita, e calmamente me perguntou “Você tá mesmo com câncer?” Eu disse: “Não sei. E por que não?” “Por que você nunca consegue falar sério?” E séria, ela disse: “Eu vou devolver isso aqui na locadora, tá?” Eu fiz que sim com a cabeça, embora tenha pensado em responder “Mas eu não terminei de ver!”, mas não falei porque achei que poderia estar exagerando.

ORIGINAL TASTE

A gente estava sentado num banco de uma pracinha, vendo uns meninos jogar bola na grama, quando ela me disse: “Você tá com um negócio verde nos dentes.” Eu dei de ombros e disse “Que se fôda.” Ela retrucou na mesma hora: “Mas você é um babaca mesmo! Eu não sei porque eu ainda tento. Eu aqui querendo fazer você parecer um pouco menos patético, mas não adianta. Ridículo.” Eu já estava tão cansado de todas as nossas discussões que achei melhor não falar mais nada. Dei de ombros de novo, respirei fundo e me concentrei no jogo dos meninos.

A primeira vez em que eu a vi ela estava andando numa rua perto da minha casa, e estava junto com um cara um pouco mais baixo que ela. Eu fiquei impressionado, pois eu nunca tinha visto uma mulher anã tão bonita quanto ela. Ela não tinha as características comuns às pessoas que sofrem de nanismo, como braços e pernas curtos. Era uma mulher perfeita, só que pequena. O rapaz também, apesar de ela ainda me parecer mais proporcional. Na hora eu até pensei “puxa, que casal bonito”. Só mais tarde descobri que os dois eram irmãos.
Nós só nos falamos mesmo umas duas semanas depois, quando ela entrou no escritório da empresa em que eu trabalhava. Eu era novo no emprego, e quando vi aquela mulherzinha andando em frente à minha mesa, eu comentei com um colega: “Quem é essa?” Ele respondeu: “A Barbie, nunca viu?”, e nós rimos. Insisti: “Mas agora falando sério, quem que é essa daí?” “Ah, ela é executiva de um dos nossos maiores clientes. É um daqueles exemplos de mulher bem-sucedida, inteligente, interessante, simpática. Formada em Oxford, morou na Europa um tempão. Fala não sei quantas línguas, entende de artes e o cacete. É bonita, mas eu não tenho coragem de pegar uma mulher menor que minha irmãzinha de dez anos.” E eu até concordei com ele. Pôrra, eu tenho mais de 1,90. Naquela hora eu me senti um depravado querendo aquela mulher com não mais de 1,20 de altura.
Neste mesmo dia, todo mundo lá do escritório recebeu convite para uma vernissage que ocorreria à noite. O evento ia ser patrocinado pelas duas empresas, a dela e a minha. Como eu não ia perder a boca livre, e o negócio ia ser sofisticado, fui para casa, tomei um banho e peguei a minha pobre melhor roupa. Logo que cheguei lá, ela veio falar comigo. Ela era muito simpática, e me fez me sentir muito à vontade. A conversa fluía fácil, e o vinho ia subindo. Ela propôs que a gente fosse conversar em um barzinho chique perto dali, e duas horas depois eu e ela estávamos na mesma cama; um mês depois, sob o mesmo teto. Estávamos desesperadamente apaixonados, e como ela morava sozinha em um apartamento enorme, e minha família era só eu mesmo, não demorei muito a aceitar a oferta. E por algum tempo nós fomos muito felizes. A família dela me recebeu muito bem: eu me sentia um filho ali. Aquele quarteto de pequeninos me adorava e eu os adorava também. O irmão dela – aquele cara com quem a vi pela primeira vez – era gentil, fino, educado e alegre, igualzinho aos pais e à irmã. Na casa deles eu me sentia um Gulliver bobo, desajeitado e contente.
Lá pelo nosso sexto mês juntos, as nossas diferenças já não eram mais tão conciliáveis assim, e tudo o que eu fazia a irritava, e o modo como ela me repreendia me humilhava. Eu pensava comigo mesmo “CUIDADO, VOCÊ ESTÁ FAZENDO TUDO ERRADO. ASSIM VOCÊ VAI PERDÊ-LA” Então eu ficava me policiando, mas era eu fazer qualquer cagadinha e vinha aquela formiguinha de tailleur me dar de dedo.
Mas tudo foi pro vinagre de vez quando eu, desgraçadamente, decidi abrir um e-mail com anexo desses que a gente recebe e manda pra todo mundo depois. O título era “O novo mapa-mundi”. Ele mostrava uma foto com as pernas abertas de uma mulher mostrando a vulva e o ânus. Sobre a foto, havia uma aplicação gráfica qualquer imitando um mapa, e no lugar da vagina estava escrito “Casa do Caralho”, e sobre o ânus, “Cu do Mundo”. Eu achei aquilo muito engraçado e soltei uma gargalhada incontrolável. Meu chefe não estava com o mesmo humor que eu, e veio ver do que eu estava rindo. E eu, idiota que sou, me atrapalhei com o mouse e ao invés de fechar a janela do computador eu a abri totalmente. O cara só me disse “termine o que você está fazendo e venha à minha sala.” Resultado: fui mandado embora por usar um computador da empresa para ver pornografia.
Ela ficou sabendo da história no mesmo dia, e quando cheguei em casa fui recebido aos gritos de “Seu punheteiro, babaca! Como é que fui me envolver com você? Saia da minha casa, seu merda! Eu não sei o que eu vi em você! Quer uma revista pornô pra se masturbar? Eu compro uma pra você, porque agora você não tem mais dinheiro nem pra isso!” E ela falou, falou, falou, até cansar. E eu agüentei tudo quieto, porque mesmo que eu tentasse explicar ela não iria querer ouvir naquela hora. E assim, o que começava a azedar ficou intragável. Mas eu não tenho para onde ir, e ela já está me sustentando há dois meses. Eu não consigo emprego, não tenho pra onde ir, e acho que ela só não me manda embora da casa dela de uma vez de pena de mim. Embora eu até ache que ela já tenha outro. Aí eu acho que não vou suportar, e vou me mandar daqui.

* * *

“Puxa, gente, há quanto tempo que a gente não tinha um churrasco destes? Também, já fazia quase um ano que eu não arrumava um namorado assim... Olha, se esse babaca pensava que ia ficar vivendo às minhas custas de graça, ele estava enganado. A minha sorte é que ele tem, aliás, tinha o sono pesado. Não foi muito difícil amarrar o idiota na cama e enfiar o travesseiro na cara dele. Pra falar a verdade, achei que ele ia agüentar mais, sabe? Ele se debateu tão pouco... até pra isso ele era preguiçoso... Mas pelo menos agora ele tá aí, quase inteirinho. É, porque o fígado não deu pra aproveitar, eu sei que a senhora adora fígado, mamãe, mas é que o desgraçado apesar de novo, já tinha bebido demais na vida. A bunda, espero que seja tão gostosa quanto era bonita. A carne é bem macia, tem pouca gordura... É claro que eu não fiz lingüiça do pinto dele, há, há! – eu não ia ser óbvia a este ponto, mas os testículos estão aí, pra quem quiser pegar. Eu sei que o papai adora, pegue papai!, pode pegar porque eu não quero, e ninguém mais aqui gosta... Já tá pronto o miolo? Nossa, que cheiro maravilhoso... ah, quanto tempo que eu não vejo miolo assim, com pouco uso, graúdo, bonito, olha só isso aqui! – nossa, eu estou louca pra experimentar. Puxa, maninho, mas isso aqui está lindo, só você pra preparar um miolo assim... deixa eu provar: Hum! Que delícia! Ele podia não ter uma idéia que prestasse, mas o cérebro... original taste! Magnifique! Um brinde!”


Novo Mundo, 10 de outubro de 2006.

segunda-feira, janeiro 22, 2007

O EREMITA

O centro de Curitiba às seis da tarde de sexta-feira produz uma avalanche sônica. E Isaak estava ali, andando e sendo soterrado por esse monstro.
Ia cansado, desesperançoso e entediado dos outros. Esperou em pé na fila pelo seu ônibus, ouvindo um velho conhecido falar. Dentro do ônibus, ainda em pé, o pobre ouviu o chato até o fim de sua viagem. Isaak não gostava de conversar no ônibus com pessoas de quem ele não gostasse muito; muitas vezes chegara a descer em um ponto qualquer no desespero de ter de trocar palavras inúteis com estranhos conhecidos.
Chegou em casa extenuado e ficou ainda mais quando percebeu que o lugar estava tomado pelo grupo de amigos de seus pais, que todas as sextas-feiras invadiam a casa de um dos integrantes da turma para jogar baralho. Isaak cumprimentou todos com um só “Oi, pessoal, tudo bem?”, e todos responderam “Oi, Isaak, tudo bem?”. Isaak beijou seu pai, sua mãe e foi para o quarto. Ficou com preguiça de tomar banho, embora ansiasse muito por um, deitou de costas sobre as mãos e ficou olhando para o teto, pensando no seu destino: a convivência com os outros e a vida prática o deixavam louco, como pernilongos numa noite de calor e de insônia. Isaak arquitetava.

Um mês depois, Isaak forçou sua própria demissão, e com a sua indenização mais algumas economias, saiu de casa. Os pais protestaram, não entendendo. Isaak disse que depois voltaria para deixar seu endereço, e sumiu.

Isaak alugou uma pequena meia-água atrás da casa de uma senhora, em uma rua tranqüila e poeirenta do bairro do Boqueirão. Pagou seis meses de aluguel adiantados e pediu para não ser incomodado, e tudo ficou bem.
A meia-água tinha um quarto com sala e cozinha juntos, e um pequeno banheiro. Isaak a escolheu porque além de escondida, a meia-água também tinha os móveis mais essenciais: pia, mesa, duas cadeiras, fogão, geladeira, cama, guarda-roupa, um sofazinho velho.
No começo, Isaak podia ser visto saindo para comprar comida ou produtos de limpeza e higiene, mas isso não durou muito. O rapaz passava longos períodos imóvel: sentado à mesa após as refeições, deitado na cama pela manhã, sentado no braço do sofá à tarde.
As cortinas sempre fechadas: Isaak nunca olhava pela janela, nem precisava: não havia nada que ele precisasse ver. Isaak mudava: começou a tomar água na privada, como se nunca tivesse sabido para que esta servia, e deixava de preparar seus alimentos, comendo-os crus, nas raras vezes em que sentia fome. Aos poucos o chão era coberto com seus excrementos, e a pestilência tomava o lugar que antes era do ar. Isaak arrancara suas roupas, num acesso de desconforto causado pelo pano. Isaak tornou-se um primata feliz.
Numa madrugada, Isaak acordou, levantou-se do canto em que dormia e viu seu reflexo no espelho da porta do armário. Como se nunca tivesse visto a si mesmo refletido, fez um movimento de tocar a imagem, quando esta, rispidamente, perguntou: “O que você vai fazer?” Isaak soltou um grito simiesco de pavor, e correu para o canto do quarto encolhendo-se e tremendo de medo. A imagem continuou a falar com ele, proferindo um discurso ridículo e absurdo, evocando imagens de dor, ódio e sarcasmo perversamente religioso, que mesmo que Isaak entendesse, não lhe faria a mínima diferença. Depois, mais calmo, o reflexo de Isaak, meneando a cabeça desaprovadoramente, fez um último, “hum” de descaso e, dando de ombros, foi embora.
Isaak ficou ali, esperando a imagem voltar, o que não aconteceu. Algumas horas depois, na madrugada, o rapaz, nu e tremendo de frio, levantou-se do canto onde estivera encolhido até então e cuidadosamente colocou um, dois, três dedos dentro do mundo do espelho, recuando rapidamente. Então, colocou a mão toda uma, duas, cinco, dez vezes. Mais confiante colocou o braço todo, e como que tateando por dentro de uma janela, tocou a parede por dentro. Por último, colocou a cabeça e olhou para o lado esquerdo, depois o direito, para cima e para baixo, e para a frente. O que viu, pouco lhe importou. Depois voltou para o seu canto, deitou e esperou amanhecer para que o sol lhe aquecesse.

Paris, 21.03.2005

ANALDA

Analda é a minha hemorróida. Pode parecer engraçado, curioso até, dar nome a uma hemorróida, mas na minha família acreditamos que nomear as coisas é uma boa forma de torná-las mais interessantes e familiares.
Analda, ao contrário das outras hemorróidas das quais eu já ouvi falar, prima pela discrição – dado seu tamanho reduzido – e pela sua pequena assiduidade em minha bunda. Nas vezes em que aqui compareceu, sangrou apenas duas ou três vezes, nunca fazendo estardalhaço. Já me causou dor e desconforto, mas jamais algo insuportável.
Por duas vezes Analda foi submetida ao bisturi de um proctologista japonês de humor sarcástico – penso ser o sarcasmo algo necessário a tal especialidade médica – para a remoção dos coágulos que a trouxeram, e sempre com sucesso. No entanto, não posso de maneira alguma perdoar-lhe a vez em que, por causa dela, fui parar no consultório de um médico vil e certamente muito do mal-intencionado que me tirou a honra enfiando-me uma micro-câmera rabo adentro.
Há tempos Analda anda ausente, mas como diz a sabedoria popular, “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe.” Assim, essas mal traçadas linhas são para você, Analda. Uma homenagem à sua bem-vinda ausência, desgraçada.

P.S.: Aos desavisados e maliciosos, hemorróidas não são causadas pelo que entra, mas sim pelo que sai.
Budapeste, 13.04.2005

AULA DE INGLÊS 2006

Puta que pariu, que que eu tô fazendo aqui nessa aula de inglês? Já falei que não gosto dessa porra. Me fudi um par de vezes no colégio por causa dessa merda: sempre ficava de recuperação e passava por conselho de classe – é porque no meu tempo diziam que inglês não reprovava. Eu nunca entendi como é que essa joça funciona. Eu entendia História, Biologia, Ciências, essas coisas, mas inglês... Ainda mais agora que eu já tô mais velho. A cabeça velha já não funciona mais tão bem. Muita cachaça e maconha, né?
Se bem que pelo menos a professora é uma gostosa. Cara de riquinha, bonita, deve ter no máximo, no máximo, vinte anos, com esses cabelo loiro que não é loiro, meio chanel... luzes! é, é assim que elas chamam o cabelo assim. Hummm... esse decotinho, ela ainda tá bronzeada e dá pra ver a marca do biquíni... essa sainha justa... putz, nem é bom ficar pensando muito. A dondoquinha aí deve ter um carrão que o papai deu, já deve ter ido pra Disneylândia umas dez vezes..., deve ser superamiga do Mickey e do Pato Donald, hehehe...; só usa roupinha de marca, nunca lavou uma louça na vida... Que foda... Putz, ela tá começando a fazer perguntas pra todo mundo, e logo vai chegar a minha vez, e a única coisa que eu sei falá é no, you isn’t.
– Are you single or married?
– Nou, iú isenti!
– Ok... again. Are you SINGLE or MARRIED? – Ela tá me mostrando o dedo como se
tivesse uma aliança ali. Parece que ela tá perguntando se eu quero casar com ela. Porra, com essa gostosa... eu caso! Bom, eu sei também falar yes!
– Yes!
Um babaca de oclinhos dá uma risadinha, tipo me chamando de burro. Eu fico vermelho, louco de vontade de gritar pro filho da puta: “Eu não sou bicha igual você, pra não querer casar com essa gostosa!” Em vez disso só olho pra ele com a minha pior cara de raiva, tipo perguntando “algum problema aí, filha da puta?”, e o playboy do caralho fecha o cu. Aí eu volto a falar com a teacher:
– Repíti, plísi? – eu não sei se tá certo, mas agora já foi.
– All right. Are you SINGLE or MARRIED? – ela faz todo os gestos de novo. E eu fico
perdido, mas olho com uma cara de quem tá decifrando o enigma da pirâmide. Porra, acho que o ó do borogodó aqui é o tal do singou. Tem uma mulher do meu lado, com jeito de gente boa que me diz baixinho “Você é casado ou solteiro?” Eu respondo baixinho também, “Solteiro”.
A professora olha e diz:
– Oh! You’re single!
Caralho, então singou é solteiro... eu, muito pateta, digo:
– Podes cry, tchitcher, eu singou!
Agora todo mundo está rindo. Eu fico vermelho, mas orgulhoso. Porra, mandei bem. O
único que não ri é a bichinha que já tinha rido antes. Também, acho que se ele risse eu dava uma porrada nele. Eu fico cuidando dele, mas ele fica olhando pro chão. É bom mesmo.
A professora, ainda rindo, continua a fazer perguntas pros outros. Eu não sei porque lá na firma eles tinham que me mandar pra essa porcaria aqui. Vou aprender inglês pra quê? Pra conversar com o Guima e com o Cruz? Aqueles dois cozidos? Dizem que todo mundo lá no trampo tem que se reciclar, e o caralho a quatro. Reciclar o quê? Não sou lixo, porra. Querem que eu volte a estudar... Olha, eu não sou o mais esperto, mas burro eu também não sou. Faltava só dois anos pra eu terminar o segundo grau. Tudo as gambiarra que tem na instalação lá de casa fui eu que fiz. Tudo no capricho. Melhor que muito eletricista que enfia a faca na gente. Olha, eu sô mais eu.
Lá vem a gostosa de novo com outra pergunta:
– What do you do?
– Uóduiudú?
– Yes!
– Yes!
Todo mundo ri de novo. Putz acho que tão pensando que eu sô idiota.
– Não intends. Ripíti, plísi.
– What do you do?
A mulher do lado me ajuda de novo. “O que é que você faz?”
– Ah! O que que eu faço, né?
– Yes! – a tchitcher fala, toda simpática. What do you do?
– Ah... eu... eh... eu...
– In English, please...
– Ahn?
A minha personal ingleiser aqui do lado fala: “em inglês”
– Ah, em inglês eu não faço nada. Só sei falar “nou, iú isinti!”
Porra, aí todo mundo começa a rir de verdade. Daí eu levanto, puto da cara, mando todo mundo ir tomar no cu, eu não quero mais fazer essa bosta, o pessoal lá da firma que vá se foder, eu não faço mais essa porra, e ainda faço de conta que vou dar uma porrada naquele viado que ficou rindo de mim. Ele se encolhe todo e eu quase me cago de rir da cara dele.
A teacher vem atrás de mim, e quer conversar e tal. Eu digo que eu não queria fazer o curso, que eu tô lá pela minha firma, que desculpe eu ter zoneado a aula dela, mas eu não vou ficar passando por burro, que burro eu não sou, que eu quase terminei o segundo grau, só faltava mais dois anos, e que a instalação lá de casa foi tudo eu que fiz, e que eu nunca estudei pra ser eletricista, que eu aprendi tudo sozinho, mas que inglês, ah, puta que pariu, inglês não dá. Porra, em inglês eu sempre fiquei pra recuperação, e que eu não gosto e que foi lá na firma que mandaram, e aí quando vi já tinha repetido tudo umas duas vezes, e daí pergunto se ela tem namorado. Me arrependo na hora, porque daí ela dá uma risada que não é de alegria e diz que não era pra isso que ela tava ali, daí eu falo que achei ela muito linda, ela agradece e repete que ali não é lugar nem hora pra isso, e que era pra eu ir pra casa esfriar a cabeça, e que se eu não queria fazer inglês eu não tinha nada de estar ali atrapalhando o trabalho dela, e aí eu fico envergonhado e tal, e então eu peço desculpa umas trinta vezes e saio dali humilhado, mas resolvido que na semana que vem eu tô ali de novo pra chamar a teacher pra ir num barzinho comigo, que eu acho que ela é do tipo de menina que curte ir em barzinho, é, podes cry, que eu acho que é “pode crer” em inglês, né?

Novo Mundo, 24 de março de 2006.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

DOR DE DENTE


Cézar acordou cansado de uma noite mal-dormida, e percebeu que na verdade fôra uma dorzinha de dente o que o incomodara a madrugada toda. Com serenidade ele pensou que logo a sensação se dissiparia; tomou café, fumou um cigarro, brincou um pouco com sua filhinha, Bê, conversou mais outro tanto com Lúcia, sua mulher, e foi para o trabalho.
Houve momentos em seu dia que ele chegou a esquecer que seu dente existia. O trabalho era duro, e provavelmente este fato teve sua parcela de responsabilidade pela aparente ausência de dor. No começo da noite, algum tempo depois de chegar em casa, moído de cansado e com o corpo já frio depois de um banho, ou seja, quando finalmente estava em condições de perceber quem era de novo, Cézar sentiu o leve desconforto na boca transformar-se numa dor excrusciante. Cézar estava longe de estar em condições de pagar um dentista, especialmente àquela hora, quando todo mundo já está se aninhando no sofá depois de ver o Jornal Nacional. Ele estava começando a pensar em pegar algum dinheiro emprestado com seu irmão ou com sua cunhada para pagar pelo alívio daquilo quando tocou o telefone: era Marcelo, um velho amigo. Lúcia, a mulher de Cézar, atendeu, e entregou o fone ao marido.
“E aeh, Cezinha!? Beleza?”
“Beleja. E voxê?”
“Tranqüilo... e o rock? Baixando muita coisa?”
“Tô meio devagar, andei baxando tanta coija que nem xei maij o que pegar.”
“Ô cara: desculpa a pergunta, mas você tá meio lôco, né? Cê tá com uma voz de chapado..., parece que tá com alguma coisa na boca...”
“Não, cara... tô com uma dor de dente filha da puta...”
“Putz, cara, dor de dente é o bicho... pôrra, a Lúcia não falou nada... pô, desculpa aí, vai descansar, cara, que quando a gente tá com dor, a gente não quer saber de nada. Cara, você não tem aí como ir num dentista?”
“Tenho, meu xogro tá em caja, é aqui perto, e meu irmão mora aqui do lado também, qualquer coija eu falo com algum delej.”
“Então beleza. Melhoras pra você. Dá um beijo na Bê e na Lúcia, tá?”
“Xó. Valeu. Falô.”
Cézar desligou o telefone e foi deitar, pra ver se a dor passava. Dois minutos depois, o telefone toca de novo, e é Marcelo mais uma vez. Cézar, começando a ficar de saco cheio, vai atender só por consideração pelo amigo:
“Alô?”
“Cézar, é o seguinte: se você quiser eu saio agora e vou aí te pegar e te levar num dentista. Tudo bem?”
“Ô, cara, valeu, mas não prexija, eu me viro por aqui.”
“Tá, mas se der algum problema aí, me ligue, mas me ligue mesmo. Se você não quiser ir agora, mas o bicho pegar mais tarde, pode ligar. Se precisar, pode me acordar, não tem problema, que eu vou aí e a gente vai num dentista, beleza?”
“Ã-hã, valeu, Marxelo. Xe prexijar eu ligo. Valeu mejmo.”
“Então descanse e ligue, que é nessas horas que a gente tem que poder contar com os amigos.”
“Ã-hã, valeu mejmo.”
“Então, beleza. Ligue aí, certo? Não se acanhe.”
“Ã-hã, ...brigadão.”
“Falou, um abraço, e melhoras.”
“Ã-hã... valeu, Marxelo.”
Cézar desligou o telefone de novo, e voltou a se deitar. Falou para Lúcia que ia subir pro quarto e que queria ficar sozinho, sem barulho. Lúcia concordou e ficou na parte de baixo da casa com Bê.
Cézar tremia de dor. Queria morrer, se isso fizesse ele parar de sentir aquela dor infernal. Tinha vontade de gritar, urrar. Chegou a pensar em pegar o alicate e arrancar aquela merda daquele dente, mesmo sem saber qual deles estava doendo... queria era arrancar a boca toda fora, arrancar o que quer que fosse, mas que fizesse aquela dor parar. Quase levantou para ligar para Marcelo para ir a um dentista, mas o Marcelo morava no outro lado da cidade. Se bem que àquela hora não tinha tanto trânsito assim, então ele ia levar uns quinze ou vinte minutos pra chegar. Cézar procurava uma saída do meio daquele redemoinho de desespero quando viu um cara com um cabelo grande em seu quarto. O cara era jovem, com certeza tinha menos de trinta, não muito alto, magrelo, mal vestido, parecia que tinha saído de algum filme de gangues dos anos 70. Cézar ficou tão assustado com a visão que perdeu a voz, queria gritar mas não conseguia; queria entender como aquele cara tinha entrado ali – “ladrão filho-da-puta!” – pensou Cézar. O cara estendeu a mão para ele e disse:
“Fica tranqüilo, cara. Não sou ladrão, não. Sou amigo. Você não tá me reconhecendo?” Cézar fez que não com a cabeça; “Pôrra você até fez uma coletânea da minha banda esses dias... Eu sou o Bon Scott, do ACDC.”
Cézar arregalou os olhos: Bon Scott morrera em 1980, afogado no próprio vômito de tão bêbado. Cézar queria ter certeza de que estava sonhando, e queria acordar rapidinho, mas a visão era bem real.
“Cara, eu sei como é que é dor de dente. É foda. Não há nada que resolva, a não ser ir pro dentista e pagar uma grana pra ele meter qualquer merda na tua boca pra cortar a dor e fazer você ficar se sentindo um bebê chorão. Olha, eu vô te contar uma coisa que ninguém sabe: eu só fiquei muito doidão aquele dia, porque eu tava com uma dor de dente do caralho, igual a essa tua. E eu bebi tanto, mas tanto, que a minha dor passou. E fiquei mandando ver – pra mim tudo era farra, you know – até que eu capotei. Só que no fim, eu me fodi: dormi de barriga pra cima, sozinho, vomitei que nem um porco, parecia um chafariz de vômito, há! há! há! – e agora tô aqui. Foda, né cara? Putz...”
Cézar, mais calmo, tentando se refazer do susto, conseguiu perguntar:
“Voxê foi pro xéu?
“Olha cara, não acredita nessas coisas de céu e inferno que falam, porque não é bem assim. É uma pira, quando você vier pra cá você vai ver. Não esquenta com isso agora, não. Pro inferno, inferno, que nem todo mundo fala, ninguém vai não. Eu, que fiz um monte de cagada, não fui.”
“Cara... oxê fala portuguêj aí onde xê tá?”
“Aqui a gente fala o que a gente quiser. Língua não é problema aqui. Bom, eu tenho que ir, mas antes preciso te dizer uma coisa. Eu sei que você é chegado numas birita: uma cervejinha, uma cuba, coisa e tal. Pô: faz um copão de cuba, mais rum que Coca, que você vai ver: é capaz de amanhã você estar ainda melhor que antes.”
“Maj eu não faxo cuba com rum.”
“Quê que cê usa?”
“Pinga.”
“Pinga?”
“É. Cachaça, conhexe? É de cana também.”
“Aaahh... sugarcane. Tô ligado. Nunca tomei. Deve ser forte, né?
“É.”
“Então, faz a cuba com mais pinga que Coca. Só não me faça a cagada de ir dormir sozinho e com a barriga pra cima...”
“Não, eu nem conxigo fazer isso, xó durmo de lado. E eu xô cajado, vô dormir ca minha patroagem...”
“Tô ligado... bom, muito bom. Então, falou cara. Tudo de bom. Mais pinga que Coca, hein? Falou! See ya!”
E, diante dos olhos de Cézar, Bon Scott sumiu. Cézar levantou-se e foi até a cozinha. Sem falar nada, pegou a Coca e a pinga, fez uma cuba digna de nota no maior copo que tinha na casa: quase meio litro de água benta que passarinho não bebe, e em que Cézar acreditava ser capaz de operar um milagre. Sob a mira dos olhares silenciosos de Bê e Lúcia, virou em dois ou três minutos o copo todo. Chegou a achar que ia vomitar, pois bebeu rápido demais – e lembrou-se das palavras de Bon. Então disse:
“Ô, Lúxia: não me deixa ficar de barriga pra xima.” A mulher fez que sim com a cabeça.
Estava bêbado o suficiente para cair na cama e desmaiar. Até a manhã seguinte.

* * *

Na manhã seguinte, Cézar lamentava consigo mesmo: pena não poder contar pra ninguém: quem ia acreditar naquilo? Qualquer um ia dizer que foi um delírio, uma alucinação; mas ele sabia que não era. Bon Scott esteve ali. De qualquer forma, isso nem era tão importante assim, depois de tudo o que passara: sentia que poderia ser um homem feliz – com uma leve ressaca, claro – mas feliz, e descobriu que no fundo de sua boca uma merda de um dente do siso estava apontando, e que isso tinha lhe proporcionado duas coisas, uma boa e outra ruim. A ruim, obviamente, fora aquela dor diabólica; a boa, a visita de um angelical Bon Scott, que lhe salvara a vida usando a mesma receita que um dia o levara à sua Highway to Hell.


EPÍLOGO


No ano de 2.177, Bon Scott fôra finalmente beatificado pelo Sumo Pontífice, devido ao grande número de graças recebidas por pessoas das mais diversas partes do mundo, todas atribuídas ao bom vocalista. A história era sempre a mesma: depois de o terem visto, e recebido dele as santas palavras para a cura: “mais rum que Coca” para a maioria, “mais pinga que Coca” para os brasileiros.
Conjunto Novo Mundo, 22 de setembro de 2006.

BODAS DE QUÊ?

A sobrinha, sentadinha no chão sobre o caderno aberto, fazendo pesquisa para a escola, um dia perguntou a David:
– Tio, 25 anos de casamento é bodas de prata; de 50, é de ouro. Tem mais alguma?
David dá um grito para a mulher na cozinha:
– Ô, bem! Há quantos anos nós ‘tamo junto mesmo?
– Oito, David... – responde a mulher.
– Pôe aí, minha filha: oito anos: bodas de merda.